#AUTORA                       

capitulo10







Já fazia dois dias desde a desastrosa confissão com Zack, mas Lizzie ainda sentia-se extremamente infeliz. Raul também não chegara de sua viagem, o que em nenhum momento a preocupava, mas bem que gostaria que o homem estivesse em casa para lhe fazer companhia.  Nem mesmo o orfanato a fizera sentir tão solitária e isolada! E como não tinha nenhuma vontade de aventura-se novamente pela cidade em busca de distração, o ânimo tornava-se ainda pior, bem semelhante a sua estima.
Passara os últimos dois dias deitada no sofá assistindo televisão, ou cochilando ou atacando a geladeira como se sua ultima esperança de felicidade fosse a comida. Jurava que tinha engordado pelo menos uns 3 quilos nesse meio tempo, mas não se incomodava, pois não tinha mais a quem agradar ou motivo pra querer se sentir bonita.
Toda vez que se lembrava do olhar decepcionado ou da expressão descontente de Zack, Lizzie era invadida por um fundo sentimento de tristeza e raiva. Mesmo se prometendo que iria esquecê-lo por ele não ter lhe dado a oportunidade de explicar toda a historia decentemente, ela não podia culpa-lo de ignora-la logo de cara. De fato, era uma história absurda, e provavelmente, nem ela mesma acreditaria se estivesse no lugar dele. A questão é que Lizzie já não tinha mais esperanças de que o rapaz pudesse reconsiderar a hipótese de ouvir a explicação dela e aceitá-la como a verdade, acreditando ou não.
No meio de toda sua lamentação dramática na casa de Raul, Lizzie tinha ido à rua somente uma vez, que foi apenas para comprar vodka. Fez um grande esforço pra fazê-la durar o máximo de tempo possível, mas no terceiro dia após o desentendimento com Zack, a garrafa estava vazia. Ao cair à noite, Lizzie viu-se completamente agoniada, e a bebida fazia falta. Fitava a garrafa vazia em cima da mesa com as mãos inquietas e os lábios ressecados, desejando com toda a sua força que de alguma forma aparecesse magicamente mais vodka ali dentro. Infelizmente isso não ia acontecer, e deste modo, não lhe restou opção se não comprar outra garrafa.
Na mente de Lizzie, a falta da bebida tinha mais a ver com a necessidade de esquecer-se daqueles pensamentos deprimentes, e da oportunidade de se isolar num mundo particular sem preocupações, e onde ao menos podia encontrar alguma graça nas coisas ao seu redor. Em sua cabeça, Lizzie bebia, principalmente, pra tentar esquecer Zack. O problema é que isso não acontecia com 100% de eficiência. A única coisa que mudava, é que em vez dos pensamentos melancólicos a respeito do garoto, eles eram mais insensíveis e rancorosos. Entre um sentimento ruim ou outro, o segundo estava, de um jeito estranho, a “tranquilizando”.

O céu estava escuro quando foi à rua. Agasalhou-se porque as nuvens baixas faziam ventar bastante. Mais uma vez, o bairro estava naquele aspecto sombrio: mal iluminado, deserto e mesmo assim, causando sempre aquela sensação de que havia alguém lhe vigiando.
 Lizzie estava com as mãos no bolso do casaco de moletom, onde segurava com força a nota de vinte dólares; Os últimos dólares deixados por Raul – Ela se quer lembrava exatamente como gostara o resto.
Não sabia onde mais poderia comprar vodka àquela hora da noite e naquela área, a não ser no Papa Jones. Por mais que temesse esbarrar com Zack por lá, o que não era impossível, ela estava disposta a correr o risco. Entraria no lugar, compraria a bebida e sairia em menos de 5 minutos – era o que planejava. Acreditava que as chances de encontrar Zack no pub eram mínimas, ainda contando com o fato azar (ou sorte) que ela sempre tivera com essas coisas.
De fato, mesmo com o local tumultuado dificultando a passagem, Lizzie não levou muito tempo pra comprar a bebida. Andou com determinação até o balcão, dando algumas cotoveladas pra abrir passagem entre as pessoas, e evitando olhar demais em sua volta, esperando que assim não percebesse a presença de Zack caso ele estivesse ali no meio. O mesmo barbudo do dia anterior a atendeu, reconhecendo-a imediatamente.  Lizzie sorriu sem graça e entregou a nota de vinte dólares, e o homem entendeu seu pedido. Entregou-lhe uma garrafa fechada da vodka com uma piscadela.
- Viagem, por favor! – Lizzie exclamou sem jeito. O homem riu e colocou a garrafa dentro de uma bolsa plástica. Lizzie colocou a mesma debaixo do braço, agradeceu com um sorriso tímido e tratou de sair do pub com a mesma rapidez com que entrou.
Enquanto cambaleava até a saída, Lizzie podia jurar ter visto rapidamente um vulto passando entre as pessoas atrás de si, indo na mesma direção que ela. Não conseguira vislumbrar a fisionomia. Deixou pra lá.
Continuou seu caminho, inicialmente, com passos lentos. Enquanto estivesse próxima ao pub que tinha movimento, se sentiria segura. No entanto, conforme se afastava ela se apressava. O volume do som dos seus passos era muito maior naquela extremidade do bairro, onde o silêncio era quase total pela falta de ‘vida’.
Abraçava a garrafa com força contra o peito, olhando para os lados constantemente. A sensação de estar sendo vigiada, de repente, tornou-se mais intensa. Tinha quase certeza que alguém a observava. E foi quando espiou rapidamente sob os ombros, que percebeu que uma sombra seguia-a a alguns metros.
 “Deve ser só alguém indo embora também” – imaginou esperançosa. Mesmo com o pensamento otimista, Lizzie fez questão de caminhar mais rápido. Ao fazer isso, notou que o barulho dos passos da pessoa logo atrás também ficou mais alto, indicando que aquele ou aquela também passara a andar mais depressa. Obviamente, isso a assustou. Sua parte intuitiva dizia que estava sendo seguida e que o melhor era correr logo, mas sua parte racional forçava-a não agir de tal forma, e sim continuar “calma” e caminhando ligeiramente sem parecer apavorada.
“A casa de Raul não é tão longe. Vai ficar tudo bem! Não é nada” – repetia mentalmente, segurando involuntariamente a garrafa com mais força.
Tomada de curiosidade, olhou pra trás a fim de tentar ver o rosto da pessoa. Levou um susto. Não era uma pessoa, mas sim uma figura negra. Uma figura negra que parecia caminhar fantasmagoricamente atrás de si. Parecia Tito.
 “Não pode ser!”
Engoliu em seco.
Tito nunca ficara tantos dias longe de Lizzie como naquela semana, e ela quase esquecera da lembrança do demônio. Ela estava tão distraída com a história de Zack e as noites de alcoolismo que se quer dera conta do sumiço de Tito, o que teria feito se tivesse ficado metade do dia em sua sã consciência. Por mais confortável que fosse não ter Tito em sua volta, Lizzie sabia que isso, geralmente, não significava uma coisa boa.
Piscou os olhos repetidas vezes acreditando que antes sua mente lhe pregava uma peça e que assim, agora, seus olhos veriam a realidade. Quando se virou pra olhar novamente e com mais atenção, a figura negra havia criado volumes, formas... Uma aparência humana que não conseguia visualizar muito bem em função da pouca luminosidade da rua.
Sentiu-se confusa. Achava que tivesse visto Tito claramente, mas então percebeu que aquela era uma pessoa. No entanto, sua preocupação não tinha diminuído. Havia uma pessoa atrás dela, e Lizzie quase tinha certeza que aquela a seguia.
Ela não saberia dizer se sentia medo, mas definitivamente aquela não era uma situação agradável. Quase fora violentada uma vez, e só escapara por uma intervenção completamente sobrenatural, que ela só conseguia ligar a Tito. E o problema era que ela agora estava sozinha numa rua deserta onde provavelmente não conseguiria ajuda se precisasse.
Sem perceber, Lizzie caminhava ainda mais depressa, e mais um pouco pareceria que estava correndo. Ofegante, respirou com mais calma quando avistou a casa de Raul a uns 300 metros.
Não se conteve e deu outra espiada sob os ombros e apavorou-se quando viu o “perseguidor” a menos de dois metros de suas costas. Mesmo mais perto, a visão de Lizzie vacilara como resultado de sua afobação, e não a ajudou a ver o rosto da pessoa, mas que pelo desenho do corpo aparentava ser homem; Este que parecia inquieto na tentativa de alcança-la. Uma voz masculina e familiar em sua cabeça alertou-a, gritando seu nome no momento em que ela percebeu o homem erguendo o braço pra agarra-la pelo ombro.  
Sem pensar duas vezes, tomada por um súbito desespero irracional, Lizzie jogou a garrafa de vodka na cabeça do homem. Um barulho alto quebrou o silêncio. O homem bambeou e caiu no chão desacordado com o impacto do objeto. Mas não só isso; Lizzie batera a garrafa tão forte, que alguns pedaços de vidro lhe perfuraram a cabeça e partes do rosto, machucando-o seriamente.
Os olhos de Lizzie estavam mais arregalados do que os de uma coruja. Seu coração batia demasiadamente acelerado.
- Ai nossa, o que eu fiz? – se perguntou assustada.
Agira impulsivamente num momento de medo, imaginando de cara que aquela era alguma tentativa de uma ação violenta contra ela.
Quando se aproximou do corpo caído e agachou-se para enfim visualizar a fisionomia do homem caído, Lizzie tomou outro susto: Era Antony. Desmaiado e bastante ensanguentado!

Ao retomar, parcialmente, a consciência, Lizzie se viu em casa. Fechava a porta com as costas, quase se deixando escorregar na madeira. Seu coração batia tão forte e sua respiração estava tão intensa, que chegava a imaginar se daquele jeito poderia sofrer um infarto.
Lizzie havia fugido... Tinha deixado Antony caído e machucado no meio da rua, como um lixo abandonado.
Ela ainda sentia o mesmo susto e pavor de minutos atrás, antes de sair correndo e abrir a porta de casa com tanta pressa que por pouco não quebrara a chave. A saliva descia cortante pela garganta seca, ao contrário de seus olhos, arregalados e tão lacrimejados que já não seguravam as lágrimas. Essas escorriam sem freio pelo seu rosto, ainda mais pálido. Tudo o que Lizzie pensava era na imagem de Antony ensanguentado no chão, e que ela era a culpada daquilo.
Negava-se mentalmente de que nada acontecera.
“Foi coisa da minha cabeça” “Foi apenas uma ilusão” – falava pra si mesma, querendo realmente acreditar no que pensava. “Eu não toquei no corpo dele e só o olhei por 2 segundos” – argumentava.
Mas então, se o que pensava fosse verdade, porque ela segurava metade da garrafa de vodka em sua mão?
Ao notar isso, Lizzie deixou o recipiente de vidro quebrado cair no chão e gemeu ainda mais amedrontada. Agora não tinha como achar que nada acontecera! No máximo, podia acreditar que a ilusão fora ter visto o rosto de Antony no corpo desmaiado, mas pra ter certeza, teria de voltar na cena do acidente. E se Lizzie havia fugido de lá por medo, dificilmente voltaria. Aquela altura, já era capaz de alguém ter encontrado-o e chamado ajuda. Ou não...
Atônita, Lizzie foi até a cozinha, onde encheu um copo de água pra beber. As mãos trêmulas quase deixaram o copo cair. Seus olhos estavam paralisados em qualquer ponto sem foco, e sua mente estava longe, vagando nos motivos pelo qual ela havia fugido em vez de prestar ajuda.
Lizzie estava tomada pelo medo, completamente fora de si. Seu cérebro não pensava racionalmente sobre a situação por completo. A única coisa que sua mente conseguia se concentrar era no fato de que ela havia ferido gravemente uma pessoa, então, instintivamente, ela fugiu. E agora que começava a voltar vagarosamente em sua sã consciência, acreditava sinceramente de que fora a melhor coisa a ter feito. Por ela, é claro. Se tivesse ficado lá, ela ia ter que chamar uma ambulância, o que acarretaria também em explicações para a polícia, o que não seria nada bom!
Lizzie poderia sim dizer que atacara Antony em legítima defesa, mas até provar isso, o que faria? E se ele tivesse morrido? Ela não tinha como pagar um advogado. Ela era maior de idade, logo, já respondia judicialmente por suas atitudes. Lizzie não tinha ninguém na cidade. Raul estava fora da cidade, e não dava pra contar com ele. Nem com Martin. Nem com Zack.
Obviamente ela sentia pena e se preocupava com a situação de Antony, mas Lizzie precisava pensar primeiramente nela. Ela era como uma estranha naquela cidade, sem família, sozinha, que onde passava acontecia tragédias.
Lizzie se sentia sem opções quanto ao episódio, mesmo sabendo que na realidade, elas existiam.
Voltou pra sala e se jogou no sofá. Agora temia que alguém tivesse a visto atacar Antony, mesmo acreditando que não tinha visto ninguém perto deles, e as pessoas mais próximas estavam na entrada do pub, vários metros atrás. A escuridão da rua certamente ofuscara a cena. Mesmo assim, não tinha como ter certeza absoluta.
Na sua mente, não existiam testemunhas. E como a parte em que segurara a garrafa pra bater na cabeça de Antony ficara em sua mão, não existiam digitais pra incrimina-la. A não ser... Antony. Se ele continuava vivo, seria um problema pra Lizzie ao acordar.
“Droga! Porque esse desgraçado não me chamou em vez de me dar aquele susto?!”
Esmurrou o braço do sofá algumas vezes e subitamente parou. Lizzie então percebeu de que o grito de alerta que ouvira em sua mente, na verdade, tinha saído de Antony. Ele havia gritado o nome dela chamando-a e, no entanto, ela assustada confundiu a realidade.

Lizzie acordou de madrugada depois de um pesadelo; Tremia e suava frio.
Seu subconsciente tinha repassado todo o episódio de horas atrás, com a diferença de que ao chegar em casa, Lizzie encontrava Antony parado no meio da sala. Ele, com sangue sujando metade da cabeça, segurava uma garrafa da vodka da mesma marca que Lizzie comprara. Em seu pesadelo, Antony a torturava de várias formas explícitas e bizarras com a garrafa, como por exemplo, fazendo-a comer vários cacos.
Esfregou os olhos e se levantou. Seus lábios estavam ressecados e Lizzie sentia muita sede. Sendo assim, caminhou sonolenta até a cozinha, onde bebeu três copos de água com tanta vontade que parecia ter voltado de um deserto.
No caminho escuro de volta ao quarto, Lizzie surpreendeu-se quando encontrou Antony parado em frente ao corredor, bloqueando-o. Ela, paralisada, não conseguia acreditar no que seus olhos viam. Piscou os olhos, balançou a cabeça, mas nada adiantou. Antony permanecia parado em sua frente, olhando-a com uma expressão melancólica. Várias perfurações e um grande corte na testa desfiguravam o rosto dele, sujo de poeira e sangue.
Com a voz rouca, Lizzie gaguejou o nome de Antony.
- Porque fez isso Liz? – as palavras do garoto quebraram o silêncio de um jeito mórbido.
- M-me d-desculpe... Eu n-não sabia que e-era v-você...
Lágrimas desceram instantaneamente dos olhos de Lizzie. Antony também chorava. Sua expressão era demasiadamente penosa. Ele parecia perdido, desolado. Não pra menos já que estava morto.
- Mas eu te chamei – a voz de Antony era frágil, assim como seu olhar.
- Eu achei que era coisa da minha cabeça – respondeu envergonhada. Passou a mão no rosto para limpar as lágrimas que insistiam em cair – Eu sinto muito Antony... E-eu jamais faria isso com você intencionalmente...
Antony abaixou a cabeça choramingando. Lizzie sentiu seu coração apertar. A culpa a golpeara veemente.
- Porque abandonou meu corpo, Liz? – perguntou baixinho.
Lizzie engoliu em seco e mordeu o canto do lábio.
- Eu tive medo... m-me desculpe...
- Medo? – Antony levantou a cabeça e fitou-a com interrogação.
- É difícil explicar.
- O mínimo que você pode fazer é me explicar Lizzie – a voz de Antony saiu mais áspera. Lizzie corou sem graça.
- Medo do que podia acontecer depois... Depois que a policia ou alguma ajuda chegasse – Lizzie contraiu os lábios. Antony ainda estava com aquela cara de quem não entendia – Sabe, eu não fui totalmente sincera com você sobre mim... A verdade é que eu não tenho ninguém, nenhum familiar aqui em Trenton. Vivo de favor nessa casa... Não tenho dinheiro... Nada.
- Ah... Primeiro você mente pra mim, depois você me mata. É muito difícil simpatizar com você agora Lizzie - A expressão de Antony era de repulsão, assim como o desgosto em sua voz.
Lizzie abaixou a cabeça, corando ainda mais de vergonha.
- Tem algo que eu posso fazer pra me desculpar? – soluçou.
- Me trazer de volta a vida? Acho que não, né? – Riu com sarcasmo e raiva.
De repente, Antony olhou para um ponto além de Lizzie, como se tivesse tomado noção da presença de alguém ou alguma coisa. Lizzie acompanhou-o com o olhar, mas não via nada, apenas a sala atrás de si completamente normal.
- Acho que chegou a hora – murmurou.
- Não! Por favor, me diz se tem algo que eu posso fazer – Lizzie exclamou. Quase levantou o braço na tentativa de segurá-lo, mas percebeu que seria provavelmente impossível.
O corpo de Antony começou a sumir vagarosamente, como se fosse cinzas levadas pelo ar. Antes de desaparecer completamente, porém, falou rancoroso:
- O que você podia ter feito, não fez!
Lizzie pranteou.

Naquela manhã, Lizzie não sentiu fome, nem sede, nem nenhuma outra necessidade ou desejo físico. Passara horas recostada no sofá, abraçando os joelhos e olhando a televisão sem nenhum interesse de fato em assistir o que passava. Sua mente estava bem longe, mais exatamente, no seu sentimento de culpa. Não conseguia parar de pensar em Antony, e em como ela lhe tirara a vida mesmo que sem querer. Sentia-se uma assassina e jurava que jamais se perdoaria por aquilo.
O que mais lhe torturava, era lembrar de que havia o deixado ferido na rua. “Eu podia tê-lo curado...” – cogitou por um momento, mas então a ideia colidiu com o mesmo problema que a impedira de pedir ajuda. Curar Antony iria requerer tempo e muita concentração. Duas coisas que ela não teria num momento como aquele. E isso sem falar da grande probabilidade de tudo dar errado: Alguém (principalmente a polícia) chegar antes de ela terminar, e o processo de curar dar errado. De novo. Lizzie não sabia o que poderia ser pior: não tentar curá-lo, ou tentar e acabar acontecendo o que acontecera com Lucy.
Lizzie desejava a volta de Raul desesperadamente. Sem ele por perto, ela sentia-se desorientada. E esse sentimento aumentava gradualmente depois da conversa tensa com Zack e o acontecimento da noite anterior com Antony. Lizzie não se via naquele estado intenso de melancolia e preocupação há muito tempo, e sabia que aquilo não era um bom sinal vide o que Raul avisara. Tudo aquilo só fornecia ainda mais energia pra que sua metade obscura aumentasse e ela começasse a perder instabilidade.
Subitamente, pensou em Tito.
“Por onde ele está?” – questionou. Buscou fundo em sua mente, e não se recordava exatamente qual fora a ultima vez que o vira. No entanto, no momento em que notara alguém a seguindo noite passada, ela jurava que vira a sombra negra do demônio no lugar de Antony. Sabia que ela havia confundido a realidade, e que provavelmente era mais uma obra da sua mente vulnerável e confusa, mas a verdade é que aquele sumiço de Tito a assustava. Lizzie achava muito difícil de acreditar que ele tivesse simplesmente a deixado em paz justamente naqueles últimos dias em que lhe acontecera tanta coisa negativa, o que para ele, seria um banquete de tudo que lhe era mais apetitoso.
Enquanto Lizzie se isolava com seus pensamentos, as horas foram passando sem que esta as notasse. O dia, que estava demasiadamente nublado, não denunciava a passagem do sol para a lua – ambos escondidos atrás das nuvens pesadas. E durante todo esse tempo, Lizzie permaneceu sentada no sofá na mesma posição, olhando através da televisão ligada em algum programa, sem se importar em alimentar-se ou se arrumar – ainda vestia o conjunto de moletom que usara pra dormir.
Pouco antes de cair à noite, Lizzie decidiu que não iria mais se negar ao que mais desejava naquele momento: Zack. Por mais confiante ou corajosa que se sentisse ao provar de vodka ou ecstasy, nenhuma daquelas sensações se comparava as que ela sentira ao lado do garoto. Logo, naquele momento em que ela se encontrava, não era de confiança ou coragem que ela precisava pra dar um pouco de paz à sua alma, e sim carinho.
Lizzie estava disposta a arrumar uma forma de provar a Zack que falara a verdade. Não sabia ainda como, mas daria um jeito. O importante pra ela naquele momento em que fechava a porta da casa de Raul em direção a casa de Zack, era que ela fosse até lá e o encontrasse; Olharia em seus belos olhos verdes e encontraria o principio do conforto que metade de sua alma precisava. E isso era o bastante por hora.
Lizzie praticamente correu até a casa de Zack. Não conseguia conter a necessidade que sentia, não conseguia esperar. A cada centímetro mais próxima, seu sorriso inconsciente crescia nos lábios. Lizzie já podia se sentir menos triste só com a ideia de que logo estaria com Zack, mesmo com a possibilidade de que o contato não durasse mais que alguns segundos. Pena que essa felicidade antecipada acabou depois de insistentes batidas na porta da casa dele sem nenhuma resposta.
 “Ele deve estar dormindo” – pensou realmente esperançosa de que essa fosse a verdade. O problema é que qualquer pessoa acordaria com o barulho que Lizzie estava fazendo na porta, e depois, com gritos chamando seu nome.
Era noite, a rua como sempre estava vazia, e ficar parada na frente de uma casa estranha não era uma boa ideia. Lizzie continuava encarando a porta fechada porque não queria olhar para a rua – tinha evitado isso enquanto corria até a casa de Zack, mantendo sua visão fixa num ponto vago do horizonte. Por quê? Olhar para a rua daquele bairro a faria lembrar-se de Antony. Mas agora Lizzie teria de encarar. Ficara subitamente desanimada por não achar Zack, e não tinha vontade de correr de volta.
Assim que girou sob os pés pra ir embora, Lizzie esbarrou em alguém. Cambaleou e quase caiu pra trás com o impacto inesperado, mas a pessoa a segurou com força pelo pulso, impedindo que Lizzie despencasse no chão.
- Eu bebo e você cai? Que fraquinha! – exclamou uma voz feminina desconhecida. Ao se recompor, Lizzie pôde avaliar a pessoa com quem esbarrara: uma mulher curvilínea usando um vestido com estampas tropicais, com leves rusgas disfarçadas atrás de uma maquiagem pesada e com cabelos esvoaçantes cor de mel. De tudo que a mulher tinha de exuberante, apenas uma coisa Lizzie gostara, e achava familiar: os olhos verdes. Os mesmos olhos de Zack, cuja única diferença era os cílios carregados de rímel.
- Ah, me desculpe – murmurou desajeitada. A imagem daquela mulher, por algum motivo, fazia Lizzie estremecer. Ela tinha aquela clara e típica aparência da mulher que quer parecer mais jovem, mas que exagera na produção ao tentar fazer isso. Ainda assim, ela era muito bonita, e havia algo no seu olhar e na sua voz que a deixava incrivelmente sedutora e intrigante.
- Procurando alguém? – a mulher perguntou enquanto remexia a bolsa. Dela, tirou uma chave que enfiou na fechadura da porta da casa de Zack, confirmando o que Lizzie começara a suspeitar assim que vira aqueles olhos verdes.
- Procurando o Zack – respondeu, observando a falta de jeito que a mulher tinha ao tentar rodar a chave. Pelo seu andar e seu hálito, Lizzie podia ver claramente que ela estava levemente bêbada. Pensou em ajudar, mas não queria parecer indelicada.
- Ele saiu antes de mim. De tarde. Foi fazer uma visita – falou antes de finalmente conseguir abrir a porta. É claro que Lizzie logo pensou no nome de Summer para a tal visita, mas em seguida lembrou-se de Martin. Zack dissera que o visitaria na prisão por aqueles dias.
Qualquer uma das opções deixava Lizzie desconfortável.
- Você é a mãe dele, né?
A mulher sorriu de um jeito debochado que Lizzie, inicialmente, não entendera. Depois ela ajeitou a postura e fitou a menina.
- Eu acho que não mais – respondeu, agora com um sorriso incrivelmente assustador, que acompanhava os olhos, que brilhavam mais que o normal. De repente, Lizzie começou a sentir um frio percorrer a espinha, e uma forte sensação de que o ar ficara subitamente comprimido. Lizzie conhecia bem aquela sensação, ainda que não a sentisse há alguns dias.
Involuntariamente, olhou para os lados em busca de Tito, mas não o encontrou. Engoliu em seco, aflita. Aquele frio na espinha era como um sinal de alerta, chamando atenção para um eminente perigo à vista.
Quando Lizzie desistiu de procurar por Tito, percebeu que a mulher sumira e a porta ficara aberta. Ela provavelmente tinha entrado, deixando a porta aberta como um singelo convite por mera educação. Lizzie tinha ficado tão absorta ao sentir a presença de Tito, que simplesmente parara de dar atenção à mulher e nem saberia dizer se ela havia dito mais alguma coisa, como por exemplo, convidado-a a entrar.
Lizzie deu dois passos em direção ao interior da casa de Zack, completamente imersa na escuridão. “Maldita falta de eletricidade” – lembrou, e imaginou se a mulher, aparentemente bêbada, não estava tendo dificuldade em andar pela casa naquela situação. Mesmo acostumada com o lugar, os reflexos abalados e as pernas bambas, certamente, iriam dificultar. Com isso, Lizzie pensou se não seria melhor procura-la, imaginando se a mulher não precisava de alguma ajuda.
Andou até o fim da sala, que já não contava com o feixe de luz que invadia a casa pela porta aberta, quando foi surpreendida com a volta da mulher ao cômodo. O susto foi inevitável, já que a outra aparecera repentinamente através da escuridão do corredor. Lizzie deu um gritinho e colocou a mão no peito.
- Assustei? – a mulher riu. Um riso gélido que quebrava o silêncio perturbador que estava instalado na casa.
Lizzie assentiu, respirando fundo.
- Você é a mãe do Zack, né? – perguntou novamente, completamente esquecida de que já havia feito esta pergunta. A sensação da presença de Tito a distraira exatamente no momento em que a mulher respondera.
 Ela revirou os olhos.
- Acho que você sabe a resposta – respondeu fria. Lizzie sentiu-se desconfortável com o tratamento indiferente da mulher, que não mostrava nenhum interesse em também saber quem era aquela menina estranha que agora entrara em sua casa e procurava pelo seu filho àquela hora da noite. Pelo o que Zack falara sobre a mãe, dava pra se imaginar que ela não fosse muito afetuosa ou preocupada, mas no mínimo, deveria se atentar com estranhos em sua casa.
Lizzie não sabia o que falar, nem mesmo, o que fazer. Ficou imóvel no meio da sala, observando a mulher se sentar no sofá e acender um cigarro.
- Quer que eu a ajude a acender uma vela? – perguntou Lizzie depois de uns segundos, tentando se mostrar prestativa. Independente de qualquer coisa, aquela mulher era a mãe de Zack, e Lizzie queria agradá-la pra causar uma boa imagem.
- Não precisa... Gosto do escuro.
Lizzie mordeu o canto do lábio.
Por algum motivo, ela não conseguia encarar a mulher, olha-la diretamente nos olhos.
- Er... Eu não quero incomodá-la, mas a senhora acha que o Zack vai demorar?
- Senhora? Ai não! – ela fez uma careta e depois fitou Lizzie seriamente, levando o cigarro até os lábios vermelhos – Como eu poderia saber?
- Ah, não sei. Imaginei que talvez ele tivesse comentado as horas que poderia estar de volta – respondeu completamente sem graça. Aquela mulher sabia como deixar alguém desajeitado, e Lizzie já se sentia assim naturalmente na maioria das vezes.
- Bom, você é a namoradinha dele, né? Então... Você que deveria saber – indagou arqueando a sobrancelha de um jeito debochado que só não irritara Lizzie porque a mesma já estava tomada de vergonha.
- N-namoradinha? Eu n-não acho que eu sou isso – gaguejou, enrolando uma mecha de cabelo no indicador – Mas então a Senh... Você sabe quem eu sou? – franziu o cenho. Lizzie não se considerava namorada de Zack porque em nenhum momento houve um pedido oficial de namoro, ou qualquer coisa do tipo que conseguia se lembrar, mas por algum motivo, a mãe dele sabia de seu envolvimento com o filho. Obviamente, Lizzie estava mais que interessada em saber.
A mulher deu uma longa tragada no cigarro e abriu um grande sorriso misterioso.
- É óbvio! – ela se levantou e andou vagarosamente na direção de Lizzie, que inconscientemente, começou a andar de ré, retribuindo o olhar penetrante da mulher que a encarava – Eu te conheço mais do que qualquer outra pessoa. Mais do que você mesma se conhece!
Lizzie abriu a boca pra protestar alguma coisa, mas nenhuma palavra saiu. Aqueles olhos verdes e sombrios a fuzilavam, e a insinuação que fizera deixara-a confusa. Mais confusa ainda Lizzie ficou quando a mulher alisou seu rosto com uma expressão maliciosa que a incomodara profundamente. Lizzie quis esquivar do toque, mas só seus pés continuavam respondendo as suas ordens - de se afastar.
- Sabe Lizzie, eu sempre quis te tocar. Essa pele pálida e macia... Igual a da sua mãe.
As últimas palavras atingiram a consciência de Lizzie como um soco no estômago. Finalmente, ligara o que sentia com o que via.
Lizzie não sabia como, mas agora tinha certeza: a mãe de Zack, na verdade, era Tito.
 Lizzie congelou.
- Seus olhos também... Idênticos. Mas você é diferente dela. É melhor! – Os olhos da mãe de Zack percorriam o rosto da menina de forma que não só a envergonhava, mas a irritavam também – Você tem parte de mim!
Lizzie parou, cerrou os punhos e franziu o cenho com desgosto.
- O que eu tenho de você é exatamente aquilo que tenho de pior – bradou, tomando postura novamente. Ela estava decidida a não parecer frágil, fraca. Entretanto, por dentro, Lizzie estremecia. Tito havia, de certa forma, se materializado, e ela não sabia até que ponto isso podia ser pior pra ela – e para a mãe de Zack, óbvio. Lizzie soubera por Raul que uma pessoa possuída raramente se recupera completamente. E pior do que isso, Lizzie temia acima de tudo, por Zack! Agora com Tito no corpo da mãe dele, ela nem conseguia imaginar o que poderia acontecer.
Mesmo com tantos receios, Lizzie manteve-se firme, encarando Tito por trás da face da mãe de Zack, que ainda exibia aquele sorriso de satisfação.
- O que você pretende? – perguntou extremamente séria.
- Apenas aproveitar o corpo de uma mulher atraente e amargurada pra fazer tudo àquilo que eu mais gosto.
- Que seria interferir ainda mais na minha vida, me prejudicar ou prejudicar aqueles que eu gosto? – arqueou a sobrancelha desconfiada.
- Aqueles que você gosta... Você se refere ao seu namoradinho? Porque eu faria algo com ele? – havia uma grande dose de sarcasmo nas palavras de Tito. Lizzie obviamente não confiava nele. Obviamente!
- Não sei... Porque você é um demônio, porque você gosta de fazer o mal, e principalmente, porque você gosta de me fazer mal e me ver infeliz.
- Eeeeeeeeeeeeu? Que isso querida Lizzie! Jamais – sorriu irônico. Lizzie cerrou os cílios, irritada com tamanha clara falsidade – Você sabe que tudo que eu mais quero é o seu bem. Até porque, você é da família!
Tito gargalhou, não aguentando o próprio sarcasmo.
- Eu não sei qual é o seu objetivo, mas você não vai me atingir dessa vez – murmurou entre os dentes. Tito segurou o riso e também a encarou com seriedade.
- Lizzie, se eu for fazer alguma coisa, você não vai nem ter tempo de ver ou saber.
- Isso é o que vamos ver então!
Tito sorriu diante do desafio.
Lizzie andou de ré até a saída, para assim continuar encarando-o de longe. Quando girou os pés pra passar pela porta, Tito pigarreou.
- Se cuida! – exclamou com um sorriso traiçoeiro.