#AUTORA                       

capitulo11






Lizzie saiu da casa de Zack completamente histérica.  Seu coração palpitava, e ela ainda cerrava os punhos contra o corpo. Mil coisas passavam em sua cabeça, e de todas elas, a que mais a afligia, era a segurança de Zack. Lizzie não podia ter certeza das intenções de Tito em possuir o corpo da Sra. Jones, mas sua intuição dizia que o primeiro alvo das atitudes do demônio seria o rapaz.
Pra piorar tudo, Lizzie não sabia onde Zack estava. Até cogitou ficar de plantão do outro lado da rua da casa dele, esperando-o chegar pra assim impedi-lo de encontrar a mãe possuída.  Até chegou a fazer isso. Atravessou a rua e ficou encostada no poste quebrado, escondida no escuro, apenas observando a rua à espera de Zack. No entanto, dez minutos depois, Lizzie começou a sentir-se mal. Uma forte dor no alto da cabeça a abateu como se ela tivesse sido atingida por um objeto pesado; Em seguida, com a dor, seus reflexos começaram a fraquejar e uma intensa falta de ar também a atacou.
Suas pernas quase cederam, e se Lizzie não estivesse segurando no poste, poderia com certeza cair no chão. Forçou-se para enfrentar a dor e voltar a se reerguer. Fechou os olhos, balançou a cabeça e tentou distrair a mente. Repetia mentalmente que precisava se manter forte, e por um momento, a determinação pareceu funcionar. As dores cederam um pouco, deixando-a pelo menos levantar a cabeça. Ao fazer isso, Lizzie se deparou com centenas de vultos que cruzavam a rua como se fossem pessoas correndo de um lado para o outro em alta velocidade. Eram dezenas de sombras negras “correndo” diante de seus olhos embaçados. Mas diferente de Tito, aquelas sombras não lhe causavam tensão ou arrepios. Os vultos pareciam ser apenas um problema em sua visão.
Percebendo que seu estado não era o dos melhores naquele momento, Lizzie resolveu voltar para casa. Parte de si lamentava não ter forças pra continuar esperando por Zack, mas outra parte implorava por misericórdia diante daquelas estranhas sensações de dor, desconforto e tontura.
Enquanto cambaleava em direção à casa de Raul, Lizzie ainda mantinha-se atenta no caso de esbarrar com Zack no caminho. O que infelizmente não aconteceu. Lizzie, extremamente cansada, chegou até a casa sem ver um sinal do garoto.
Em vez disso, Lizzie encontrou outra pessoa.
Quando virou a chave na fechadura, percebeu que a porta já estava aberta. Estremeceu, olhou para os lados da rua deserta e depois espiou pela brecha da porta. A luz estava acesa e ouvia-se o som da televisão ligada. Lizzie botou um pé dentro da casa e não evitou um sorriso no canto dos lábios ao ver um corpo sentado com pernas cruzadas segurando uma xícara na mão. Raul, finalmente, tinha chegado.
Lizzie não sabia por que, mas teve vontade de correr e abraça-lo. Provavelmente porque é sempre bom ter alguém conhecido, parecido e experiente por perto. E naquele momento, mais do que nunca, Lizzie precisava de alguma ajuda.
- Nossa! Que bom que você chegou! – exclamou depois de trancar a porta. Raul a olhou com uma expressão de alegria, mas percebeu instantaneamente a aflição da menina e ficou sério.
 - O que houve Lizzie? – perguntou com o cenho franzido, analisando-a. Lizzie sabia que não ia precisar falar muito, apenas pensar e lembrar-se do que acontecera, e Raul entenderia tudo em dois segundos.
Então, em vez de responder, Lizzie apenas repassou mentalmente tudo que conseguia se lembrar desde que Raul viajara.  A experiência com bebida e droga, a aparição de Zack, Papa Jones, o acidente com Antony e por fim, Tito. Lizzie tremia de ansiedade e tensão enquanto fechava os olhos com força a fim de se focar nas lembranças.
Raul pousou a xícara na mesa de centro, abaixou a cabeça e coçou a testa.
- É, isso me parece grave – murmurou.
Lizzie engoliu em seco, ainda mais preocupada depois da observação do homem. Seus olhos suplicavam por ajuda.
Lizzie sentou-se na beira do sofá e fitou Raul com ainda mais angústia.
- O que posso fazer pro Zack acreditar em mim?
Raul colocou a mão no queixo, pensativo.
- Prove o que você contou. Mostre a ele o que você é capaz – respondeu com um tom de firmeza, olhando-a de um jeito engraçado, como se divertisse ao imaginar aquilo que sugeria.
No primeiro instante, Lizzie não compreendera o que Raul tinha insinuado. O encarou com interrogação. Aí, como se conversassem telepaticamente, Lizzie começou a interpretar o conselho do homem, que balançava a cabeça afirmativamente e sorria, consentindo com o que a menina tinha entendido.
De certa forma, Lizzie respirou mais aliviada. Pelo menos agora ela tinha ideia do que poderia fazer pra Zack confiar que ela dissera a verdade sobre sua vida e condição. Assim seria mais fácil convencê-lo que a mãe estava possuída pelo demônio que a acompanhara toda a vida.
Até aí na teoria tudo certo. Faltava colocar em prática. E pra fazer isso, Lizzie precisaria encontrá-lo! O que era a maior dificuldade naquele momento.
Como ela não estava mais de plantão em frente à casa de dele, preferia que ele ainda não tivesse chegado. Um minuto que ele ficasse com a “mãe” já era um perigo. Por outro lado, por ela não saber onde o rapaz estava, sua aflição também não diminuía. Independente de onde ele estivesse, no fim, ele iria voltar pra casa e ela não estaria por perto. Então, de um jeito ou de outro, Lizzie encontrava dificuldades pra executar o que pretendia pra fazê-lo acreditar nela e afasta-lo de casa e de Tito.
Ao pensar nisso, seu coração palpitou. E se Zack tivesse chegado em casa? Tito já teria feito algo?
Lizzie teve vontade de correr até lá pra conferir, e nesse exato momento, a mesma dor de minutos atrás a atacou.  Ela se contraiu, fez uma careta e levou as mãos na cabeça. Raul, que voltava a bebericar o chá, olhou-a com exclamação.
Deitou o corpo no sofá e ficou reclamando de dor. Sua cabeça parecia queimar em brasas e seus olhos também ardiam. Quando ela os abria, enxergava novamente os vultos cruzando o ar por toda sua volta. Preferiu mantê-los fechados.
- Isso não é nada bom! – retrucou Raul, mordendo o canto do lábio. Ele se levantou e aproximou-se de Lizzie, pousando a mão livre sob o ombro dela – Lizzie, tenho que ser sincero e dizer que isso é só o começo. Se você não trabalhar sua outra metade o mais rápido possível, vai ser tarde demais. Não vai adiantar lutar por Zack se você não conseguir se manter sã e em pé.
A expressão de Raul traduzia lamentação e pena. Lizzie ainda se contorcia de dor, apoiando a cabeça no braço do sofá. Suas unhas quase perfuravam o material do móvel.
Mesmo assim, Lizzie lutava contra a forte e dolorosa pulsação na cabeça e a tontura. Em vez de pensar no que sentia, ela tentava se focar em Zack mais uma vez. Fazendo isso, Lizzie conseguiu amenizar um pouco o desconforto e voltou a se reerguer.
- Nem que eu morra no final... Luto por ele – sussurrou, encarando Raul com determinação.
Ao terminar de falar, ouviu-se um barulho na porta. Alguém batia.
Raul e Lizzie se entreolharam, imaginando quem poderia ser. Nenhum dos dois esperava visitas, estava tarde, aquele não era um bairro muito seguro e havia uma mulher possuída a alguns metros dali. Obviamente, eles pensariam duas vezes antes de abrir a porta. No entanto, uma voz conhecida chamou pelo nome de Lizzie do outro lado. Era a voz de Zack.
O coração de Lizzie acelerou. Ao mesmo tempo em que queria sorrir aliviada, tremia de preocupação. Da ultima vez que o vira, Zack não queria vê-la, e justo aquela noite, ele decidiu procura-la? Lizzie até pensou na hipótese de ser Tito imitando a voz de Zack, mas duvidava muito disso mesmo sem saber até onde iam os poderes de um demônio. Antes disso, Lizzie suspeitou que os sons viessem de sua cabeça, mas aí Raul reagiu ao barulho na porta e aos berros de Zack, e ela ficou convencida de que era a realidade.
Sendo assim, no fim das contas, Lizzie fez o que no fundo queria. Destrancou a porta e a abriu devagar pra dar tempo de espiar pela brecha. De fato, era Zack do outro lado. Os olhos verdes arregalados davam um toque de pavor junto à expressão aflita do garoto. Quando Lizzie apareceu na porta, Zack parou com os gritos, ficando mudo.
De frente pra ele, Lizzie não sabia como reagir. Havia passado as ultimas horas afoita pra encontra-lo, e agora também ficava quieta e paralisada.
- O-olá! – gaguejou Zack depois de longos segundos em silêncio. Lizzie sorriu de canto sem jeito, retribuindo o cumprimento – Eu p-precisava falar urgente com v-você...
Zack parecia sério, ainda que desengonçado com as palavras. Dava pra notar em seu olhar que alguma coisa acontecera. Lizzie avaliou o rapaz, que aparentemente estava bem, sem ferimentos ou coisa parecida. Menos mal. Agora faltava saber o que ele queria conversar.
- Tá, entra.
Lizzie saiu de frente da porta, abrindo passagem pra Zack, que acenou com a cabeça para Raul.
- Eu vou fazer mais chá. Aceitam? – adiantou-se Raul, sabendo que sua presença naquele momento não proporcionava muito conforto para os dois jovens. Lizzie e Zack balançaram a cabeça negativamente rejeitando o chá, e então Raul sumiu no corredor pra cozinha.
Lizzie fechou a porta, se sentou no sofá e gesticulou que Zack fizesse o mesmo ao seu lado. Num momento, Zack pareceu recuar, mas acabou sentando. Ficou alguns segundos de cabeça baixa, pensativo, brincando com os dedos, para então encarar Lizzie completamente inexpressivo.
- Eu visitei o Baby na prisão hoje – comentou com uma voz controlada.
Ela havia contado a ele sobre episódio com Lucy antes e depois da tentativa de cura no hospital, então não tinha o que temer sobre isso. Talvez, seu único receio era que Zack também a achasse culpada propositalmente por tudo, como ela imaginava que Martin agora pensava.
- E aí? Como ele tá? – perguntou tentando parecer tranquila.
- Como você imagina que ele está, Lizzie? Arrasado, atormentado. Matar a filha, estar preso...  – respondeu ríspido.
Lizzie mordeu o lábio, corando.
- Bom... Eu sei que nós não, er, bem... Não estávamos bem, mas eu tinha que falar com você. A principio eu queria continuar evitando isso, mas depois do que Baby disse... Não resisti – Ao falar, Zack realmente parecia relutante. Ao mesmo tempo em que tentava se conter, algo em seu olhar denunciava que ele estava inquieto.
Então, Lizzie deixou de ficar nervosa. Cansara de ficar aflita com o que poderia ter acontecido ou o que Zack passara a saber. Ela só queria terminar com aquilo que ele tinha pra falar, pra que ela então pudesse comunicar os recentes acontecimentos. Já estava na hora dela tomar controle da situação e parasse de ser a parte fraca. Afinal, ela não era. Pelo contrário.
Essa postura fez com que o desconforto em sua cabeça diminuísse ainda mais.
- O que ele disse? – perguntou, encarando-o.
- Ele me contou que Lucy tentou mata-lo naquele dia, e que ele apenas reagiu pra se defender. Que ela estava completamente diferente, agressiva... Outra pessoa – Zack franziu o cenho, abaixando o olhar. Lizzie sabia que Zack estava ligando o depoimento de Martin com o que ela lhe contara anteriormente – Ele falou que em num certo momento do surto, os olhos de Lucy sangraram e ela começou a berrar de um jeito macabro e emitir ruídos estranhos... No meio disso, ela ficou falando seu nome e...   
Lizzie estremeceu por um momento imaginando a cena, mas focou-se no rosto abalado de Zack.
- E?
- E ficou chamando por “Tito” – completou, fitando-a.
Lizzie permaneceu em silêncio, limitando-se a retribuir o olhar do menino.
Percebendo o momento de vulnerabilidade do garoto, Lizzie adiantou-se. Ajeitou a postura de forma que parecesse mais frígida.
- E o que você concluiu com tudo isso? O que exatamente você queria vindo aqui? – perguntou, depois caindo em arrependimento. Seu tom de voz chegou a ser rude, e ela não queria passar essa impressão.
Os olhos de Zack se abriram, obviamente, como forma de constrangimento. Ele estava visivelmente confuso. Quando tentou responder, gaguejou. Não conseguiu formular uma única palavra em resposta.
Lizzie bufou.
- No fundo, tenho certeza que você está começando a acreditar em mim, mas agora eu sei como fazer isso acontecer mais rápido e sem deixar dúvidas! – disse calmamente. Levantou-se do sofá e deu alguns passos em direção ao corredor – Vou aqui e já volto. Não saia daí!
Menos de 1 minuto depois, volta Lizzie da cozinha, dessa vez segurando uma grande faca afiada. Zack arregalou os olhos um pouco assustado, sem entender o motivo do objeto cortante.
Lizzie parou de pé bem a frente dele; Sua mão que segurava a faca – a mesma que havia ferido no ritual para falar com sua mãe – estava a poucos centímetros do rosto do rapaz, o que o deixou ainda mais assustado. Mesmo assim, ele permaneceu sentado, olhando-a com interrogação.
- Apenas olhe – ordenou. Então, Lizzie respirou bem fundo, fechou os olhos e esticou o braço com a mão livre bem embaixo dos olhos de Zack. O que ela fez a seguir foi rápido demais: Com a faca, Lizzie fez um corte fino e profundo de pelo menos 10 centímetros em seu antebraço. Rangeu os dentes enquanto perfurava sua pele, mas manteve-se forte. A dor do corte agora substituía aquela que sentia na cabeça. Uma grande quantidade de sangue começou a sair da ferida, pingando e manchando o tapete embaixo de seus pés. 
Zack estava de boca aberta e olhos vidrados no braço de Lizzie, cujo coração batia forte e mal conseguia controlar a respiração. Ela sentia muita dor, ainda que não demonstrasse.
- Sua doida, o que foi isso? – berrou finalmente, se preparando pra levantar e ajudar a com o ferimento.
- A primeira parte. Por favor, continue sentando. Ainda não acabou – murmurou.
- Como assim? O que tu vai faz..
- Psiu! Quieto. Só assista – interrompeu, fazendo-o se calar imediatamente.
Lizzie lembrava o resultado de seu ultimo processo de cura: a morte de Lucy. Ainda assim, estava disposta a correr qualquer risco. Aliás, ela acreditava que só dera errado com Lucy porque no caso dela, a situação era altamente mais grave, e Lizzie jamais tentara a habilidade em outra pessoa. Em situações passadas, com ela mesma e em ferimentos menos problemáticos, Lizzie conseguira realizar a cura de forma perfeita em si. Pensando assim, a menina conseguiu se concentrar firmemente na tarefa que executava.
Ignorando completamente Zack e tudo a sua volta, Lizzie encarava intensamente o corte aberto em seu antebraço, visualizando minuciosamente cada centímetro de pele. Focava sua atenção não só na imagem do ferimento, mas também na sensação dolorosa que este lhe causava.
Lizzie deixou a faca cair no chão para que pudesse usar a outra mão pra colocar sobre o ferimento. O toque a fez querer gemer, pois a superfície de sua pele dolorida latejou. No entanto, Lizzie prendeu o gemido com força, e apertou a mão em volta do antebraço, tampando o corte parcialmente.  Lizzie ainda pôde reparar Zack retrucando alguma coisa, mas seus ouvidos o ignoraram.
Foco, foco, concentração, concentração...
Consigo mesma, o processo era mais simples de aplicar. Só lhe bastava não pensar em nada, a não ser naquele ferimento. Ela deveria entrar num estado de paz interior e ligar-se exclusivamente ao corte, imaginando-o curado. E o mais fácil era que ela não estava com medo e Tito não estava por perto.
E então, Zack testemunhou aquela que seria a cena mais bizarra e inacreditável da sua vida até ali. O sangue que jorrava de dentro do corte aberto foi parando de cair. O corte aberto foi se fechando, lentamente, como se cada lado se juntasse célula por célula. Lizzie estava de olhos fechados, então não via a expressão de espanto de Zack, nem a cura que realizava perfeitamente em seu antebraço.
Por fim, no lugar de um grande corte restou apenas uma cicatriz. O único sangue ainda existente era aquele que terminara de deslizar antes do fechamento do machucado, e que agora manchava sua pele.
Vendo que seu trabalho terminara, Lizzie tirou a mão de cima da cicatriz, exibindo-a melhor para Zack, que ainda se negava a aceitar que ela simplesmente acabara de fechar um corte que, numa pessoa normal, levaria muitos pontos mais tarde. Negava acreditar que Lizzie tinha se curado de uma forma só vista em filmes de ficção.  Ele estava estupefato, ainda com os olhos arregalados em cima da cicatriz.
Lizzie respirava mais tranquila. A dor acabara. Tudo correra bem e ela se sentia orgulhosa do feito. Mesmo assim, ficou em silêncio aguardando alguma reação de Zack – alguma outra que não fosse apenas aquela cara de espanto.

 
Lizzie precisou esperar por mais de 5 minutos pra ver a expressão de Zack mudar. Aquela cara de exclamação deu espaço a um olhar confuso, e finalmente, o garoto criou forças pra se levantar do sofá. Algumas vezes ele aproximava os dedos até o antebraço de Lizzie com vontade de tocar e sentir a cicatriz, mas recuava. Era fato que Zack estava assustado e surpreso. Em seu mundo, coisas assim não existem, não são possíveis! Mas agora ele estava no mundo de Lizzie, e aquilo era apenas o básico do que ele podia presenciar e compreender. Diante daquela demonstração, não tinha como restar dúvidas. Ele já sabia de tudo, só faltavam provas. E agora ele via uma incontestável.
Depois de muito balbuciar, Zack conseguiu formular uma frase inteira:
- Que loucura! – exclamou, e para surpresa de Lizzie, o garoto abafou uma risada. Naquela situação, não adiantava perguntar “como você fez isso?” ou correr apavorado. Quando se está de frente a algo como isso, o melhor é esquecer explicações e se maravilhar. Por mais estranho que fosse, havia algo de “encantador” naquilo que Zack vira.
Para surpreender Lizzie ainda mais (e cora-la), o olhar do rapaz a seguir era uma espécie de admiração e avaliação. Era impossível pra ela adivinhar o que Zack estava pensando, assim como era impossível pra ele explicar a Lizzie o que ele sentia. Era simplesmente uma sensação inédita.
O mais racional a ser feito, era Zack nunca ter voltado a ver Lizzie. Agora, sabendo que ela falava a verdade, ele deveria simplesmente ir embora e sumir da vida da menina. Uma pessoa normal sentiria medo, ou no mínimo, seria inteligente o suficiente pra evitar mais problemas. Lizzie contara a ele tudo que lhe acontecerá até ali, e estava obvio que estar ao seu lado era um perigo. Ele estava em perigo. Ainda assim, Zack continuava naquela sala, de frente a ela, fitando-a como o ultimo pedaço do bolo. Ou então, era como conhecer pessoalmente uma personagem mutante do cinema. Para um garoto, a forma de vida de Lizzie era um atrativo exótico e único. Pra ele, isso só a tornava mais especial.
Aquele olhar de Zack ruborizou-a, que ainda sem entender a reação do rapaz, receava que ele tivesse ficado assustado o suficiente pra sumir de suas vistas. Completamente enganada! E pra provar isso, Zack fez a última coisa que ela esperava naquele momento: beijou-a. Foi um beijo modesto, rápido. Apenas um toque úmido nos lábios dela, que paralisada, recebeu o carinho sem jeito. Ainda com o rosto bem próximo ao dela, Zack  fixou os olhos no dos dela e sussurrou:
- Me desculpe...
Seu hálito quente de menta invadiu as narinas de Lizzie, proporcionando o aroma perfeito para aquele que era um momento tão intenso. Involuntariamente, os olhos de Lizzie marejaram junto ao largo sorriso de Zack. 
- Isso é tudo muito lindo, mas terei que estragar o clima de vocês meus jovens – anunciou Raul, entrando na sala com uma expressão desanimadora e sem xícara de chá na mão. Parou ao lado de Lizzie e Zack, que o olharam com vergonha – Lizzie, ele está por perto – completou, fitando-a daquele jeito como se o resto da conversa fosse por telepatia. Claro que ela não tinha a mesma habilidade mental que ele, mas pelo seu olhar, era possível adivinhar basicamente sobre o quê ou quem ele falava.
Lizzie fechou a cara. De fato, Raul não precisava dizer mais nada. “Ele está por perto” resumia tudo. Ela sabia que Raul havia treinado suas habilidades o suficiente para aprender a sentir presenças quilométricas de um demônio, ou o filho de um – como ele a sentira no dia que a conheceu.
 Zack estava completamente avulso naquela conversa de olhares. Percebendo isso, Lizzie lembrou-se de comunicar o que pretendia desde horas atrás.
- Olha Zack, não tenho muito tempo pra te explicar... Mas digamos que sua mãe está possuída. Literalmente. Pelo Tito!
Zack não reagiu da forma que Lizzie esperava. Tudo bem que o rapaz não mantinha uma relação muito afetuosa com a mãe, mas ele não mostrava nenhum sinal de receio ou surpresa. Ele apenas ouvira o anuncio em silêncio. No máximo pensativo.
- E ela... Quer dizer, ele, está vindo pra cá – acrescentou, com um tom de voz mais alarmante, acreditando que assim Zack perceberia alguma gravidade no caso.
Zack permaneceu aparentemente calmo.
- E o que faremos? – perguntou finalmente, ainda sem nenhuma forte expressão. Ao contrário de Lizzie, que chegava quase estar eufórica de nervoso. Se Tito estava por perto como Raul dissera, algum intuito ele tinha, e com certeza não seria pra tomar chá e fofocar.
Lizzie coçou a cabeça e mordeu o lábio. Ela não tinha ideia do que fazer, até porque, não sabia o que Tito iria fazer. Olhou para Raul clamando por socorro, na esperança de que o homem em toda sua experiência a ajudasse.
- Ficaremos aqui dentro, nos preparando mentalmente e fisicamente para o que puder acontecer. Só podemos esperar – respondeu pacientemente e depois encarou Lizzie com seriedade – Você, principalmente, precisa mais do que nunca ser forte! Concentrar-se nas suas capacidades e não ser deixar abalar. Você está fraca, vulnerável. Se Tito tentar algo, vai te atacar com palavras, vai atacar seu psicológico. Ele não pode te matar, mesmo que possuindo um corpo humano. É proibido. Mas não pense que assim o pior não poderá acontecer...
Com o enigmático aviso de Raul, Zack mostrou preocupação. Não que passara a temer perigo pela mãe, mas por ele e Lizzie. E ele ficou ainda mais abalado quando viu, subitamente, Lizzie gemer de dor. A queimação em sua cabeça voltara, e voltara com mais força. Sentiu tanto dor, que ficou tonta. Bambeou e foi apoiada por Zack, que a olhava assustado e sem entender o que acontecia. 
- O que está acontecendo? – perguntou, ainda segurando-a nos braços.
- Não sei se Lizzie te explicou, mas aqueles que descedem de um demônio, normalmente, são dominados por essa metade maligna e acabam sofrendo doenças psicológicas ou neurológicas.
- E isso é irreversível? Vejo que você está muito bem...
- É possível dominar essa energia com certo treinamento, ou então, alimentando-a. O que é mais fácil.
- Alimentando-a? Como assim? – franziu o cenho, certo de que Raul não estava se referindo a legumes e vegetais
- Prazeres carnais, pecados... Aquilo que satisfazem os demônios na terra.
Zack olhou de Raul para Lizzie, como se tentasse encontrar imediatamente uma solução para a dor da menina. Infelizmente, ele não conseguia pensar em nenhum prazer carnal ou pecado disponível por ali.
- Não adianta pensar nisso agora. Já é tarde! Grande parte da Lizzie já foi tomada por essa energia, agora essa luta interna só ela pode resolver – avisou Raul, interrompendo os pensamentos de Zack, que o olhou da mesma forma que Lizzie quando teve sua mente invadida pela primeira vez.
- Ela não vai adoecer esta noite, vai? – perguntou com medo eminente em sua voz, olhando preocupado para Lizzie, que ainda em seus braços, se contorcia de dor com as mãos na cabeça.
- Não totalmente, mas a cada dia que passa essa energia negra se intensifica. É possível que até a próxima semana, Lizzie apresente alguma patologia ou doença grave – mordeu o lábio. Raul, de fato, não exibia muita esperança em seu olhar caído, deixando Zack desolado.
- E-eu estou b-bem – sussurrou Lizzie enquanto tentava se reerguer e sair dos braços de Zack. Se havia um momento que ela queria se mostrar forte, era aquele. No entanto, quanto mais lutava contra as dores, mais intensas elas se tornavam. Era uma guerra dentro de sua cabeça e do seu corpo, mas Lizzie mantinha-se confiante.
Na tentativa de se recuperar, ela se lembrou de todas as pessoas amadas que foram machucadas por Tito e consequentemente, por ela mesma. Sua mãe, Fabrizzia, Martin, Lucy... Lembrou-se de tudo que deixou de viver por não ser uma pessoa normal, um simples ser humano. Lembrou-se de todos os medos e temores sentidos, e as noites mal dormidas por causa de seus pesadelos horríveis e constantes. E, principalmente, lembrou de que Zack era quem corria perigo agora! Ele era sua chance de redenção! E de forma alguma ela poderia permitir que ele se tornasse mais um troféu na prateleira de Tito.
De repente, todos estremeceram. Uma forte batida na porta ecoou. Todos ficaram em silêncio, na esperança de que quem quer que fosse do outro lado, achasse que não havia ninguém ali dentro. Uma mera ingenuidade, considerando que por mais que não quisessem acreditar, era bem possível que Tito fosse o autor.
Mais duas batidas, e então a voz feminina da Sra Jones quebrou o silêncio.
- Tem alguém aí? – gritou. Os três se entreolharam, mas ninguém respondeu – Olá?! Sr. Figins?
Lizzie sabia que Tito estava disfarçando. Até mesmo o tom e timbre de voz da mão de Zack estavam diferentes, provavelmente, porque queria fingir que tudo estava normal. Zack sentou Lizzie na beira do sofá e resolveu se aproximar da porta, para espiar no olho mágico. Ele identificava a voz da mãe é claro, mas pretendia se certificar se havia algo de diferente na fisionomia dela. Lizzie tentou segurar o pulso do garoto, e Raul também desaprovou com a cabeça, mas Zack continuou. Caminhou silenciosamente e passou o olho no pequeno círculo de vidro. Sua mãe parecia completamente normal. A mesma mulher excêntrica e irritante de sempre.
Zack não tinha experiência com nada daquilo. O que ele conhecia e entendia sobre demônios, possessão e afins, era o que tinha visto no cinema e livros. É claro que esperava que a mão estivesse esquisita, com aquela aparência tenebrosa que costuma se ver nos filmes. Nem mesmo o olhar dela parecia diferente, e isso o inquietou.
Ainda assim, manteve-se quieto atrás da porta, consentindo com o aviso de Lizzie.
Outra batida mais forte assustou-o, quase o fazendo gritar com o susto. Por sorte, conseguiu conter o ruído.
- Sr. Figins? O senhor está aí? – a voz estridente da Sra. Jones novamente quebrava o silêncio. Lizzie teve vontade de entender como Tito sabia o sobrenome real de Raul, que não parecia nem um pouco desconcertado com o demônio chamando-o. Imaginou que Tito pudesse, provavelmente, “acessar” a mente da pessoa possuída. E se Zack conhecia Raul por seu verdadeiro nome, sua mãe também poderia conhecer.
Lizzie sabia que Tito não ia desistir. Bateria na posta o tempo que fosse necessário até que alguém a abrisse, e que continuaria a encenar daquela forma até convencer Zack de que era apenas sua mãe. E então, mais cedo do que imaginava, Zack rodou a chave e abriu a porta num gesto rápido e impaciente. Deu de frente a mãe, que abriu um largo (e falso) sorriso ao vê-lo.  Lizzie imediatamente tentou se levantar, mas como ainda estava tonta e sentindo dores, tropeçou em seus pés. Raul correu pra segurá-la, mas só conseguiu agarrá-la quando já estava no chão. Ambos olharam para a porta onde Zack e a mãe possuída se encaravam.
- O que você quer? – bradou com o cenho franzido e punhos fechados.
- Ainda bem que eu te encontrei meu filho! – exclamou, rapidamente envolvendo o garoto em seus braços e apertando-o contra seu farto busto. O sorriso largou se fechou, e Lizzie pôde ver a mulher lhe lançar um olhar de provocação – Que bom que cheguei a tempo de evitar o pior!
Lizzie também franziu o cenho, não entendendo a cena que Tito interpretava. Queria imediatamente perguntar a Raul o que ele conseguia retirar da cabeça da mulher, mesmo sem saber se era possível fazê-lo com ela possuída. Mas Lizzie preferiu ficar quieta, fazendo-se parecer invisível no ambiente para apenas observar, guardar forças e aguardar o momento certo de intervir. Raul permanecia calado ao seu lado.
- O quê? – perguntou Zack, claramente confuso, se afastando dos braços da mulher.
A mãe então lançou um olhar bravo e direto para Lizzie, apontando-a também o indicador.
- Essa menina, essa sua amiga... Ela é uma assassina! Uma mentirosa inescrupulosa! – vociferou com desdém, fazendo Lizzie expressar protesto rapidamente.
- O quê você está dizendo? Eu sei muito bem que você não é mais a minha mãe, seu maldito – berrou, recuando.
- Como assim meu filho? Essa menina já virou você contra mim, eu sabia! Era óbvio que esse seria o próximo passo – Tito falava convincentemente sem pausas através daquela voz aguda enquanto caminhava lentamente os mesmos passos que Zack dava para trás – Essa garota está fazendo sua cabeça... Tentando te seduzir e enganar desde o começo... Te usando e manipulando...
Zack negava com a cabeça, inicialmente convencido de que a mulher mentia sob o comando do demônio que Lizzie havia contado. No entanto, ela começou a perceber que a cada palavra envenenada dita pela boca da mãe do garoto, ele se mostrava mais perturbado. Era possível perceber que a mulher criava uma conexão direta com o rapaz, não desviando o olhar por um segundo e assim o encarando firmemente. Raul sabia o que o demônio estava fazendo, e Lizzie também não demorou a perceber. Quando decidiu de levantar com a ajuda de Raul pra se meter entre os dois, voltou a cair. Um latejamento intenso atacou sua cabeça, bem na altura do seu lobo temporal. Era impossível resistir a tontura em pé, e seus reflexos caíram tão bruscamente que sua visão embaçou quase que totalmente e sua audição era mínima. Ouvir o discurso ofensivo de Tito tornou-se uma tarefa difícil. Protestar agora então era ainda mais complicado, pois sua garganta apertou e sua voz parecia inaudível.
- Não pode ser... É m-mentira... Você está m-mentindo – gaguejou Zack abalado, ainda recuando. Seu corpo enfim bateu no sofá, onde ficou ‘encurralado’ com a mãe parando em sua frente. Ela, que estava completamente sem expressão e com os olhos pregados ao do garoto, não parava de disparar acusações sobre Lizzie.
- Se eu estou mentindo, como a polícia está procurando ela, Lizzie Horn, por matar um caminheiro de forma cruel a sangue frio depois de receber uma humilde ajuda do mesmo? Sem falar na pobre Lucy, que teve os remédios drogados por essa garota que queria tomar o lugar dela!
- N-não... n-não é verdade – resistiu Zack mais uma vez, que naquela altura já estava com os olhos marejados.
Lizzie, que pouco escutava o que Tito tentava fazer Zack acreditar e lutava contra as dores em sua cabeça, olhou para Raul com súplica. Sabendo que não precisava falar, apenas mentalizou seu pedido. “Por favor, me ajude! Interrompa-o, faça algo! Não o deixe manipular Zack... Ganhe algum tempo pra mim. Por favor.”
Lágrimas desceram pelo seu rosto enquanto mirava Raul, que olhou-a com comoção. De fato, o homem ainda nada fizera pra ajuda-la se não ficar ao seu lado no chão segurando sua mão. Assim como ela, assistia Tito forjando aquela história pra fazer Zack se voltar contra Lizzie, mas não intervia. Lizzie sabia que ele podia fazer algo! Que ele saberia o que fazer pra minimizar a situação, afinal ele era um homem experiente naquele assunto. O problema era exatamente esse! Raul já conseguia visualizar o ‘final’ daquela história, pois visualizava todas as alternativas de atitudes que ele, Lizzie, Raul e Zack poderiam tomar. De todas elas, ele tomar uma atitude naquele instante, não ajudaria ninguém. Sendo assim, Raul lançou um olhar de inutilidade para Lizzie, mostrando que “poderia fazer”.
Mais lágrimas rolaram no rosto de Lizzie, que desde então não pararam de cair, pois tudo o que aconteceria a seguir não a permitira isso.