#AUTORA                       

capitulo9






Eram seis horas da manhã e Lizzie ainda estava acordada. Pra sua infelicidade, os efeitos com aspecto “positivo” da droga chegava ao seu fim, dores musculares e náuseas começavam, mas ela continuava resistindo. Na verdade, ainda estava bastante ativa. Não da mesma forma que estivera no começo da noite, mas ainda sentia-se elétrica. Poderia caminhar de uma cidade a outra, ou dançar mais duas horas seguidas tranquilamente.
Não foram estas as atividades que Lizzie fizera quando estivera no ápice do efeito da droga. De fato, ela continuou isolada na casa de Raul, sozinha, perambulando de um lado ao outro, agitada e falando consigo mesma. Por vezes, ligou a televisão; Num momento em que parou pra assistir um desenho animado, Lizzie podia jurar que via as imagens ultrapassando a tela do aparelho. Quando assistiu cenas de um filme de comédia, ela quase urinou as calças de tanto rir – nessa hora do filme, nenhuma piada era contada. E no meio da madrugada, quando procurava outros canais, optou por deixar em um que exibia conteúdo pornográfico. Assistir aquilo lhe causou calafrios e uma forte pressão em seu baixo ventre. Involuntariamente, pensou em Zack e desejou que ele estivesse lá pra poder reproduzir o que o casal do filme estava fazendo.
Lizzie sentira o coração demasiadamente acelerado, um grande bem estar e seus reflexos muito exaltados.  A principio, as sensações eram estranhas, mas bastou alguns minutos pra se acostumar e por fim acabar gostando. Por que ainda que estivesse solitária, ela não sentia necessidade de mais nada a não ser ela mesma e sua mente alucinada.
Seus sentidos foram voltando ao normal quando o sol começou a nascer, iluminando o ambiente por trás das janelas. E no que Lizzie não tinha vontade de dormir, ela tinha fome e sede, o que a levou a atacar a geladeira e acabar com quase um bolo de cenoura inteiro e mais de um litro de água.
Ela começou a relembrar aquela madrugada e concluiu que com a “ajuda” do ecstasy, a mesma passara incrivelmente rápida. Foi como se todo o barato com a droga tivesse durado apenas uma trinta minutos.
Lizzie ainda tentou forçar o sono, mas suas pupilas continuavam dilatadas e suas pálpebras mantinham-se firmemente abertas. Deste modo, ela se levantou e simplesmente começou a arrumar toda a casa, varrendo cômodo por cômodo e espanando todos os móveis. Com a euforia que ainda vibrava em seu corpo, Lizzie terminou a faxina em pouco mais de uma hora. Foi quando tirou a poeira do último canto mais improvável da casa, que Lizzie sentiu os membros cansados e desabou no sofá.  Bastou piscar os olhos pra dormir sem nem mesmo se dar conta.
Dormiu de 8:00 hrs até 17:00 hrs, quando despertou subitamente com o barulho do telefone. Como demorou muito tempo pra abrir os olhos e se levantar pra atender, a ligação acabou caindo na secretária eletrônica. Na outra linha, Raul falava aparentemente exausto:
‘Houve um imprevisto e eu vou ter que ficar até o fim da semana. Se precisar de alguma coisa, pode pegar o dinheiro que está na primeira gaveta da minha cômoda!  Espero que esteja bem! Qualquer coisa retorne pra esse número que eu estou ligando. Até mais.’
Lizzie ignorou o recado e caiu no sono novamente, voltando a acordar de repente por volta das 22:00 hrs.
Acordou estranhamente bem, sem nenhum efeito colateral negativo. Além de sentir-se fisicamente ótima, seu humor e sua estima estavam perfeitos. Feito inédito!
Levantou do sofá com bastante energia, e simplesmente decidiu que não ficaria em casa a noite toda daquela vez. Tinha finalmente percebido que desde que chegara à casa de Raul, não voltara a sair na rua, e mesmo que não conhecesse praticamente nada em Trenton, muito menos naquela região, estava disposta a descobrir algum lugar interessante para se divertir. Lizzie estava realmente determinada e confiante na ideia de ousar em suas atitudes e deixar qualquer pensamento sobre Zack de lado – ou qualquer outro pensamento que a deprimisse.
Tomou um banho caprichado e revirando a bolsa de roupas da tal amiga de Raul, escolheu uma blusa vermelha de alça e um par de botas de cano longo - repetiu a calça jeans que já usava.  Encorajou-se a colocar um pouco de maquiagem, mas lembrou-se que não tinha mais.  “Preciso pegar minhas coisas na casa de Martin” – pensou, recordando-se de que sua mochila e as roupas e maquiagem que Lucy havia lhe dado tinham ficado na casa. Mesmo pensando em algo que tinha uma ligação com Lucy e Martin, Lizzie continuou se arrumando indiferente à questão de como ficara a história deles. Era como se ela simplesmente não se lembrasse do que acontecera. Ou não se importasse mais.
Sabendo, enfim, que Raul deixara dinheiro, Lizzie sentiu-se mais confortável pra sair. Ficou ainda mais contente quando viu que o homem deixara uma quantidade generosa, cerca de 100 dólares. Lizzie pegou 40 e guardou no bolso da calça, mesmo sem saber o que faria exatamente com a quantia. Fechou as janelas, apagou as luzes, trancou a porta e enfiou a chave no pires de uma samambaia que ficava pendurada na varanda.
Quando parou na calçada, Lizzie constatou que não fora só no dia que encontrara Raul que aquele bairro era amedrontador. Novamente a rua estava deserta e sombria, com poucos postes de luz funcionando e o único movimento ali perto era de cachorros revirando latas de lixo. Ainda assim, ela virou à direita e seguiu em frente sem rumo. Enquanto caminhava, Lizzie ia anotando mentalmente algumas referências visuais pra depois poder voltar pra casa sem se perder, além de se vigiar, olhando para todos os lados com atenção. No meio do percurso, enquanto analisava a rua gravando a aparências das casas que mais se destacavam, Lizzie notou a de Zack. Pelas luzes apagadas, ela inicialmente imaginou que não houvesse ninguém, mas então se lembrou de que quase todos os cômodos da casa dele estavam sem lâmpada. Inevitavelmente se recordou da noite em que dormiram juntos ‘a luz de velas’, mas em vez de se abalar, Lizzie balançou a cabeça e se negou a continuar insistindo naquela lembrança. Voltou o foco ao seu caminho, e cinco minutos depois de mais caminhada, Lizzie pôde finalmente ver uma movimentação de pessoas. Ao chegar mais perto, viu que aquelas pessoas estavam ali por causa de um pub.
O lugar por fora causava uma má impressão, com paredes descascadas e um letreiro com a maioria das luzes queimadas, o que dificultava entender o nome do estabelecimento: Papa Jones. Mesmo assim, acreditando que não acharia nada melhor e mais perto, Lizzie entrou.
Dentro, a aparência contrastava bastante com o lado de fora. Tudo era praticamente arrematado com madeira escura; Teto, paredes, balcão, as mesas redondas, cadeiras. Dava um ar bastante aconchegante e seguro. Uma decoração simples e clássica valorizava o ambiente, e o destaque ficava para as prateleiras recheadas de diferentes tipos de cervejas, destilados e vinhos. Lizzie ficou decepcionada por não haver um jukebox como ela achava que existia em todos os pubs, ou pelo menos, um pequeno palco com música ao vivo. Em vez disso, tocava uma música dos Strokes, banda que Lizzie não conhecia – já que não conhecia efetivamente quase nenhuma. Mas foi então que ela percebeu que o público que lotava o lugar não eram aqueles homens robustos e barbudos que usam coletes enfeitados com emblemas como nos filmes, mas na verdade, tratava-se basicamente de jovens da sua idade ou um pouco mais velhos.
Lizzie sentou-se no último assento vago próximo ao balcão. Ao seu lado direito tinha um rapaz com diversas tatuagens espalhadas pelo corpo, e do outro, uma menina com cabelo azul. Nada daquilo parecia esquisito ou não convenciona para Lizzie, ainda que nunca tivesse conhecido pessoas com tal estilo. Mas o que era muitas tatuagens ou cabelo colorido comparado a praticamente ser filha de um demônio?
Um atendente de barbicha e piercing no nariz atendeu-a, que automaticamente pediu uma garrafa da mesma vodka que tomara na casa de Raul.  Felizmente, o homem não fez se quer menção de solicitar a identidade da garota, pois ainda que ela já tivesse 18 anos, não tinha consigo nenhum de seus documentos.
Lizzie pagou 20 dólares na garrafa, achando que seria suficiente. Não se preocupou em beber em um local público, principalmente porque ainda não se lembrava de nada que fizera sob o efeito da bebida no outro dia. Encheu o copo e virou tudo em apenas dois goles. Estranhamente, foi como se ela já tivesse se acostumado por completo com o sabor da vodka. Obvio que sua garganta queimara no momento em que o líquido passou pela mesma, mas não foi o suficiente pra fazer Lizzie torcer o nariz.
Lizzie não percebera, mas o rapaz tatuado ao seu lado ficou observando-a enquanto esvaziava o copo com tanta aparente tranquilidade. Sorriu impressionado.
- Nossa! Parabéns! – comentou quando ela pousou o copo vazio sobre o balcão, enchendo-o novamente.
Ela respondeu com um sorriso orgulhoso, e pôde concluir que o rapaz era realmente bonito, e que as tatuagens acrescentavam certo charme. Ele tinha olhos castanhos amendoados, seu cabelo preto estava ornamentado com um belo e volumoso topete e usava uma jaqueta de couro com calça jeans demasiadamente justa em suas pernas.
- Nunca te vi por aqui – acrescentou, analisando Lizzie dos pés a cabeça enquanto virava uma garrafa de cerveja nos lábios.
- Pode-se dizer que eu sou novata – sorriu e bebeu mais um gole da vodka também o encarando. Lizzie sentia-se extremamente confiante e atraente. Sentimentos que jamais provara de forma tão forte quanto aquela. Pensava, falava e agia como se fosse alguém diferente. Alguém que sempre quisera ser.
- Então seja bem vinda! Esse lugar aqui é ótimo – exclamou com uma grande simpatia que contrastava com sua aparência agressiva.
- Obrigada. É, estou notando...
Uma hora depois, Lizzie já tinha terminado toda a garrafa de vodka e bebericava cervejas oferecidas pelo rapaz tatuado, que ela descobriu se chamar Antony, que tinha 23 anos e adorava répteis, entre muitas outras coisas. No entanto, Lizzie mentiu em quase tudo que falou sobre ela. Como não tinha expectativas de que veria o rapaz novamente, não se importou em inventar falsas histórias interessantes sobre si.
O pub tinha ficado subitamente lotado, e mal dava pra transitar sem acabar esbarrando em alguém. Por sorte eles estavam sentados de frente ao balcão, o que facilitava pedir as bebidas. Estas por sinal, já totalizavam duas garrafas de Skyy de Lizzie, cinco cervejas de Antony e outras duas que ele comprara para ela.
Sem dúvidas, ambos já sofriam os efeitos do álcool; Reflexos afetados e muitas gargalhadas.
Uma hora e três doses de Tequila depois, Lizzie e Antony estavam se beijando calorosamente.
O beijo de Antony era faminto e tinha gosto de cerveja e cigarro. Era bom, mas diferente do beijo de Zack. E além de diferente, não superava. Tanto que no momento em que se tocavam os lábios calorosamente, a lembrança do beijo de Zack lhe viera imediatamente na cabeça. Essa que ficou um pouco mais tonta também depois de fechar os olhos e entrelaçar a boca com a do rapaz tatuado.
De repente, alguém pigarreou atrás deles. Lizzie abriu os olhos e estremeceu; Zack estava ali, parado observando-os com uma expressão constrangida. Ao retomar sua postura, Lizzie cambaleou e escorregou no banco. Antony, que não entendera o súbito comportamento dela, imediatamente a ajudou a se recompor e depois encarou Zack que continuava estagnado ao lado.
- O que está fazendo aqui? – Lizzie perguntou com a língua enrolada. Sua visão também estava bastante embaçada e sua respiração ofegante.
- Eu ia perguntar a mesma coisa – Zack olhou Antony dos pés a cabeça e voltou a fitar Lizzie – Mas acho que já tive a resposta.
- Algum problema aqui? – perguntou Antony de um jeito sério e amedrontador, levantando-se pra empeitar Zack.
- Não! Não tem problema nenhum – Lizzie exclamou, se metendo sem jeito entre os dois, que trocavam olhares zangados.
- Você não respondeu o que faz aqui – indagou. Ela não conseguia entender porque e o quê Zack fazia naquele pub, e principalmente, como ele conseguira acha-la naquele ambiente tão cheio – Você está me seguindo, por acaso? – franziu o cenho.
- É obvio que não!
- Ele tá te incomodando, Liz? – Antony interrompeu. “Liz”... Tão íntimo. Lizzie gostou da forma como ele a defendia ainda que fosse uma mera estranha, pois conversar por algumas horas e se beijar ainda não eram sinais de intimidade, mas chama-la daquela forma não a deixou muito confortável. Também a fez lembrar-se de Lucy, que costumava lhe chamar pelo mesmo “apelido”.
- Relaxa cara. Não tenho mais nada a ver com isso. Não mais! – Zack olho Lizzie decepcionado e irritado. Ela, no entanto estava confusa, bêbada e abalada com aquela situação embaraçosa.
- É bom que ele te ajude hoje, porque eu não ficarei aqui pra limpar seu vômito de novo! – murmurou antes de se virar e sumir entre as pessoas. Lizzie engoliu em seco, deixando a cabeça cair com vergonha. Antony, absorto, virou o resto de sua cerveja e ficou olhando para Lizzie com interrogação, esperando algum tipo de resposta ou explicação para o recente conflito.
Ela tentava pensar sobre o lamentável episódio, mas sua cabeça girava e estava fora de si demais pra agir com seriedade sobre a situação. De fato, Lizzie tinha até vontade de rir daquilo tudo.
- Qual o seu problema com Zack Jones? – Antony perguntou depois de uns minutos em silêncio. Lizzie abriu os olhos com surpresa. Não só porque Antony parecia já conhecer Zack, como dissera seu provável sobrenome, algo que nem mesmo ela sabia. Ou se recordava.
- Você o conhece? – arqueou a sobrancelha de um jeito engraçado, já que não tinha o controle perfeito de seus movimentos.
- Pode-se dizer que sim. Estudamos na mesma escola, e eu frequento esse pub desde a época que o pai dele estava vivo. Era um cara foda!
Lizzie demorou alguns segundos até ligar os pontos.
- Oh meu deus! Papa Jones! Isso aqui é, quer dizer, era do pai do Zack?
Antony assentiu.
Lizzie abriu a boca, pasma. Mas logo em seguida enxergou a oportunidade de saber mais sobre Zack como tanto desejou outrora. Ainda desejava, mesmo querendo mostrar que não se interessava mais. A questão é que, bêbada, ela não tinha mais forças pra bancar a indiferente racional.
- E então, o que rola entre vocês dois? – Antony sempre falava de um jeito tranquilo, mas com um olhar bastante analítico.
Lizzie não podia contar a verdade completa, já que mentira sobre quase tudo a respeito de sua vida. Não faria sentido dizer que Zack havia a levado para casa de Martin naquela manhã depois que ela explodiu um caminhão que pertencia a um homem que tentara estupra-la, mas teve a cabeça arrancada de um modo totalmente sobrenatural. Seu estado também não a ajudava a pensar com agilidade em alguma desculpa, então falou a primeira coisa que lhe passou pela cabeça.
- Conheci numa festa.
- Numa festa? Achei que ele tivesse parado com essas coisas – soltou um riso
- É? Por quê? – franziu o cenho.
- Você não sabe de nada? – O modo que Antony parecera surpreso fazia pensar que Zack era popular ou algo do tipo. Como se o que acontecera com ele tivesse sido noticia em toda a cidade, e que até mesmo para alguém nova como ela deveria saber.
Lizzie balançou a cabeça negativamente.
Antony inspirou fundo e se aproximou pra falar perto do ouvido de Lizzie.
- Zack Jones praticamente matou o pai!
Lizzie arregalou os olhos, atônita, e se desequilibrou. Antony a segurou, evitando-a de escorregar do banco novamente.
- Como assim?! – berrou. A voz embolada mais a música alta que tocava não os ajudavam a conversar. Ela desejou estar em um lugar menos barulhento, e que estivesse menos bêbada.
- Bem aqui no pub... Não faz tanto tempo, Zack estava caindo de bêbado, fazendo a maior baixaria. Acho que alguém do bar ligou para o pai dele vir buscá-lo, mas Zack não quis ir. Eles brigaram e o Sr. Jones o levou a força. O problema é que naquele dia estava chovendo muito, e tudo o que eu sei é que depois disso, eles sofreram um acidente de carro feio. Zack sobreviveu, mas o pai não resistiu – Antony fez uma expressão de desgosto.
Lizzie tapou a boca aberta, surpresa e comovida com a história. Sentiu pena de Zack naquele momento, mas também não compreendia totalmente a situação que ele se envolvera. Ela não conseguia imaginar Zack embriagado, ou brigando com o pai. Primeiro porque ele não parecera nada contente ao ver Lizzie bebendo noutro dia na casa de Raul, assim como ela não se recordava de tê-lo visto virando garrafas de bebida alcoólica; Segundo porque, todas as vezes que Zack falara ou mencionara o pai, havia um tom terno e carinhoso em suas palavras. Então Lizzie concluiu que, possivelmente, tudo isso devia ser resultado de um arrependimento ou sentimento de culpa.
Lizzie queria lembrar-se de mais alguma coisa que ouvira a respeito de Zack antes do falecimento do pai, mas ainda era muito difícil forçar a mente a trabalhar naturalmente.
- Mas o que isso tem a ver com o que você disse, sabe? De ele não ir mais a festas e tudo o mais... – Lizzie perguntou depois de um tempo. Antony, que desviara a atenção pra pedir outra cerveja – ele era absolutamente mais resistente aos efeitos do álcool -, voltou a fitar Lizzie ao ouvir a pergunta.
- Bom, acho que você não o conheceu mesmo antes do Sr. Jones morrer, né? – riu com deboche – Uma coisa é certa: Zack Jones não era nada disso que se vê hoje. Na verdade, era exatamente o contrário! – revirou os olhos.
Lizzie queria saber mais, e que Antony explicasse como Zack era, mas já estava visível que o rapaz começava a sentir-se incomodado com o assunto. E provavelmente entediado também. Antony olhava para os lados, observando o movimento do lugar desejando se misturar com outras pessoas, ou que pelo menos voltasse a se beijar com ela. Sendo assim, Lizzie teve que aceitar temporariamente as informações que acabara de conseguir, mas não ia se satisfazer só com aquilo. Sua vontade era sair dali e ir até a casa de Zack. “Não é muito longe. Eu vou lá, pergunto e vou embora. Só.” – pensou.
Quando viu, já estava fora do pub, caminhando em direção à casa de Zack.
Tinha deixado mais 20 dólares pra pagar a outra garrafa de vodka, e aproveitou quando Antony fora ao banheiro pra sair dali sem ter que explicar nada ou se despedir – algo que ela odiava.
Era bem mais complicado andar na rua em seu estado. Sentia-se um pouco melhor, e previa que seus reflexos voltariam ao normal em questão de alguns minutos, mas a rua estava parcialmente escura, e as casas pareciam ainda mais iguais com sua visão afetada.
Por muito pouco não confundiu a casa de Zack com outra, e quando se aproximou da verdadeira, quase foi direto. No fim, acabou encontrando-a. Bateu na porta com força e insistência. A demora pra que alguém a abrisse deixou-a irritada.
Finalmente, a porta foi aberta, e numa brecha apareceu Zack usando apenas uma calça de moletom. O cabelo bagunçado e o olhar apertado denunciavam que ele estava deitado, provavelmente, quase dormindo.
Ao ver Lizzie parada em sua porta, revirou os olhos.
- O que você quer? – perguntou impaciente.
- Conversar – respondeu. Tentava-se se manter séria e parada sem cambalear. O encarava com os braços cruzados.
- Agora quem não quer conversar sou eu. Vai pra casa, Lizzie – sua voz estava impressionantemente calma, enquanto sua expressão era de chateação.
- Não vou sair daqui até a gente conversar.
Zack olhou-a com ares de dúvida, mas mesmo bêbada Lizzie realmente passava a imagem de que não blefava. Evitou encara-la, decepcionado por começar a fraquejar. Coçou a cabeça e, por fim, abriu mais a porta, dando espaço pra que ela passasse.
- Você vai falar o que tem pra dizer e depois vai embora – murmurou enquanto ela entrava em sua casa triunfante.
Um pires com vela estava pousado em cima da televisão, provavelmente usado por Zack pra se locomover do quarto à sala. As labaredas iluminavam a parede atrás do aparelho e rebatia para em direção ao sofá, onde Lizzie saiu sentando.
Zack continuou de pé, em frente à porta agora fechada. Lizzie, que antes pensara em muitas coisas pra falar e perguntar viu-se em silêncio, com a mente vazia.
- E então?  - ele arqueou a sobrancelha.
Lizzie engoliu em seco, e tentando reaver os pensamentos de cinco minutos atrás, acabou dizendo tudo como não planejara.
- Eu soube sobre seu pai, o acidente de vocês e tudo o mais!
O “tudo o mais” não existia, e foi justamente nisso que ela enfatizara, fitando-o. Ela na verdade queria era descobrir o ‘tudo mais’, mas não precisava ser do jeito que falara totalmente insensível sobre um momento trágico do passado que ele tanto tinha omitido.
Zack tentou esconder a surpresa, mantendo-se firme em sua postura.
- Ah, é mesmo? E deixa-me adivinhar: Quem te contou foi o Antony? – perguntou com sarcasmo.
Lizzie contraiu os cílios, infeliz com a forma como Zack zombara da situação em vez de sair choramingando a história com mais detalhes como ela desejava.
- E o que exatamente ele te contou?
- Isso não importa. Eu quero é saber de você!
- E porque você acha que eu te devo alguma explicação agora, Lizzie? – se exaltou. Aproximou-se até parar diante de Lizzie, que se apertou no sofá. Os olhos de Zack queimavam de raiva e angustia – Eu fui até você disposto a falar sobre tudo aquilo que eu nunca conversei com ninguém, e o que você fez foi querer me assediar como um pedaço de carniça e depois acabar me fazendo te limpar do seu próprio vômito. Depois de dormir limpa e confortável, você praticamente me expulsa totalmente indiferente, não me dando qualquer oportunidade de conversar. E agora você quer “saber” de mim o que houve? Faz um favor a nós dois Lizzie, e para de ser tão egoísta! – o volume da sua voz subira demasiadamente, de tal forma que quando terminou de falar, ele mesmo se assustou. Lizzie estremeceu.
Ela bem que quis retrucar alguma coisa, mas lhe faltaram palavras. Zack chama-la de egoísta a fez lembrar-se de quando criticou a mãe usando o mesmo adjetivo. A sensação não foi boa.
Sua cabeça caiu com o peso da vergonha. Ele estava certo e ouvir a verdade doía.
- Me desculpe – sussurrou. Lizzie finalmente abandonava aquela mascara que começava a domina-la. Foi preciso ouvir Zack gritar e lhe olhar com repúdio pra sentir que tal faceta, no fundo, lhe fazia mais mal do que bem. Ser forte não implicava em, necessariamente, ser insensível.
- Posso desculpar Lizzie, mas isso não vai apagar o que aconteceu. Eu fiquei realmente magoado – disse com clara tristeza. Ele permanecia de pé, diante de Lizzie, observando-a. Ela ergueu a cabeça pra se defender, mas Zack não a deixou interromper – E hoje teve... Aquilo. Você consegue imaginar o que eu senti quando te vi beijando aquele cara?
Os olhos de Zack marejaram ao memorizar a cena. Lizzie mordeu os lábios, ainda mais envergonhada. Ao mesmo tempo, tinha raiva porque já não podia reclamar de Summer. Havia perdido a razão e a moral no momento que também cometera erros. Mesmo assim, não resistiu e rebateu:
- Imagino perfeitamente. Não sei se você se lembra, mas eu vi você beijando a Summer...
- A diferença é que eu não queria aquele beijo! Fui uma “vítima”. Ela me beijou, e logo depois eu a empurrei. No entanto, você parecia gostar muito de estar beijando o Antony.
- E como eu posso saber que você realmente não gostou do beijo dela, ou não queria?
- Você basicamente teria que confiar na minha palavra, mas eu acho que você nunca confiou em mim totalmente, né Lizzie? – arqueou a sobrancelha.
Lizzie parou pra pensar na resposta. Queria dizer que ele lhe dera motivos pra que ela não confiasse planamente, principalmente pelas coisas que ele omitira, mas então ela se lembrou de que isso ela também não tinha direito de cobrar. Ela, mais do que ninguém, vivia cheia de segredos e mentiras. A verdade era que sim, ela confiava em Zack mais do que em qualquer outra pessoa.
- Eu confiava – confessou por fim.
Três segundos de silêncio e um olhar intenso. Ela tentando passar sinceridade, e ele tentando saber se ela era verdadeira.
Zack girou sob os pés, ficando de costas para Lizzie. Esta se levantou e abraçou-o por trás.
- Por favor, Zack, me desculpe por tudo isso. Eu só estou passando por um momento estranho... Queria tanto compartilhar com você, mas não consigo – Ao apertar os olhos, uma lágrima escorreu pelo seu rosto. Deitou a cabeça sob as costas nuas dele, e um suave cheiro de sabonete invadiu suas narinas.
- Porque não consegue? – perguntou em voz baixa. Permanecia imóvel.
- Porque é... É muito complicado, não sei. Acho que você jamais entenderia – respondeu com dúvida. De fato, ela não sabia por que não conseguia simplesmente contar. Se era vergonha de sua realidade, medo de expô-lo ainda mais e algo vir a acontecer, ou covardia. Talvez porque achava que se contasse, Zack pensaria que ela era louca e assim o perderia de vez. Provavelmente, era tudo isso.
- Você só vai saber se me contar – Zack segurou os punhos de Lizzie, tirando os braços dela. Virou-se e a encarou, agora segurando suas mãos – Eu realmente quero entender o quê ou quem é você de verdade Lizzie.
- Me conte sua história. Toda ela! Sobre seu pai, Summer e etc. E então eu conto a minha! Eu prometo – disse com sinceridade. Zack a analisou por uns segundos, pra em seguida assentir com a proposta.
- Tá certo, então. Vamos esclarecer as coisas essa noite, de uma vez por todas.
Zack sentou-se ao lado de Lizzie, respirou fundo e tentou a forma menos pessoal, logo dolorosa, pra contar.
- Pode-se dizer que eu era uma pessoa muito diferente do que sou hoje. Minha conduta, minha personalidade; Tudo. Eu não era uma pessoa muito boa. Basicamente, eu só pensava em mim, era ambicioso e mulherengo – Zack revirou os olhos ao se revisitar no passado. Falava tudo pausadamente, como se contasse uma fábula – Me envolvi com a Summer no fim do terceiro ano. O pai dela é rico, e ela era a garota mais popular do colégio. Bem típico hm?! Enfim, ficar com ela também me tornou mais conhecido na escola e na cidade, e ao mesmo tempo, só fez com que meu comportamento se tornasse mais esnobe.
- Mas você gostava dela? – interrompeu, mordendo o canto do lábio. Lizzie quase pôde sentir um aperto no estômago com medo da resposta. Um aperto de ciúme.
Zack segurou um sorriso.
- Ela é bonita, e quando você cria intimidade, dá pra se ver um lado menos negativo da personalidade mesquinha dela, mas é óbvio que eu nunca gostei dela. Gostar tipo... Apaixonar-me. Como aconteceu com você – E ele abriu o sorriso. Lizzie tentou conter um suspiro, mas sem eficiência. Sorria abobalhada.
- Então, voltando... O meu plano em me envolver com a Summer era puramente ambicioso. No entanto, aconteceu que semanas depois, a gente descobriu que minha mãe estava tendo um caso com o pai dela. Parece improvável, eu sei, mas justamente a minha mãe estava traindo meu pai com o pai da garota que eu estava ficando – Zack esboçou uma careta de repugnância. Lizzie se mantinha atenta a historia de Zack, imaginando tudo o que ele falava como cenas de um filme. Deste modo, ela conseguia imaginar o que ele poderia ter sentido ao vivenciar tais momentos.
- Eu fiquei revoltado! Tudo bem que meu relacionamento com os meus pais não estava indo bem em função do meu mau comportamento, mas meu pai não merecia aquilo! Ele era a melhor pessoa que eu conhecia – Os olhos de Zack caíram provavelmente se recordando com mais intensidade sobre o pai. Estava nítida a emoção em sua expressão e voz – Summer quando descobriu também não gostou nada. Ela sempre foi muito mimada e gosta de ser o centro das atenções das pessoas. Acho que você já percebeu, né?
Lizzie assentiu.
- E vocês fizeram algo, suponho?
- Quando estávamos nos preparando pra tomar uma providência, aconteceu o acidente...
A voz de Zack novamente abaixou de volume.
- Do seu pai? – Tinha sido mais uma confirmação do que uma pergunta.
- É. Planejávamos uma emboscada para o dia seguinte ao do acidente. Na verdade, no dia do acidente, eu estava no bar com a Summer e uns amigos bebendo e curtindo por isso – Zack abaixou a cabeça e pausou por uns segundos. Lizzie não sabia dizer se ele estava memorizando aquela parte da historia ou segurando as lágrimas que começavam a querer aparecer nos olhos do rapaz. A segunda opção ficou mais provável quando Lizzie ouviu-o fungar – Mas eu sempre fui muito fraco com a bebida. Era um grande mal meu naquela época. Causei vários problemas com isso, e também fumava bastante. Eu acho que fazia isso mais pra me, sei lá, sentir descolado do que por necessidade mesmo – balançou a cabeça negando-se a compreender seu antigo comportamento.
- E o que houve exatamente naquele dia? – Lizzie perguntou paciente.
- Eu acabei bebendo muito, e a vibe da cerveja se misturou com a raiva que eu estava sentido sobre minha mãe e tudo o mais. Comecei a gritar no bar, querer arrumar problema por qualquer coisa. Foi uma grande palhaçada. Óbvio que alguém do bar ia acabar ligando pro meu pai, e óbvio que ele iria atrás de mim. Como estava chovendo, ele foi de carro... Ele ainda tentou me convencer a ir embora tranquilamente, mas eu estava fora de mim – A voz de Zack ficou tremula, assim como sua mão. Os olhos ficaram mais brilhantes, resultado das lágrimas que estavam prontas pra cair, mas que ele segurava – Brigamos feio. Falei tanta coisa horrível e desnecessária... E quando ele me arrastou até o carro, eu pude ver a expressão de desgosto e vergonha no rosto dele... – E finalmente duas lágrimas rolaram pelo seu rosto. Zack respirou fundo e fitou Lizzie com o olhar mais triste que ela já o vira fazer – Estava chovendo muito forte, e como discutíamos também no carro, ele não prestou atenção na rua. Batemos contra um ônibus... Mais exatamente, ele bateu. Ele virou o carro de um jeito que o lado dele levou quase todo o impacto da batida...
As palavras de Zack foram ficando emboladas enquanto ele fungava. Os olhos de Lizzie também estavam lacrimejados, pronta pra acompanha-lo no choro.
Ela pousou a mão no ombro dele, alisando-o com carinho.
- Olha, não foi culpa sua Zack – sussurrou. Ele soltou um riso irônico.
- Não foi? Pelo amor de Deus Lizzie, ele morreu porque tinha ido me buscar! Se eu não tivesse dado problema no pub, ele não teria ido até lá. Ou então, não sei, se ele não tivesse virado o carro pro lado dele pra me proteger... Talvez ele estivesse vivo, não eu...
Zack passou a mão nos olhos, limpando-os. Sua expressão era de inconformidade e raiva. Lizzie ficou sem falar. Não sabia mais o que dizer pra confortá-lo numa situação como aquela. E também sabia que nada que dissesse seria reconfortante o suficiente para lhe tirar o sofrimento.
- O que me deixa mais chateado é que estávamos passando a pior fase do nosso relacionamento antes de ele morrer. Sabe? As coisas horríveis que eu falei pouco antes do acidente... Toda a vergonha que eu estava o fazendo passar... Não é justo! - choramingou. Lizzie contraiu os lábios, intrigada. Continuava acariciando o braço de Zack em silêncio. E então ele também ficou em silêncio, absorto em seus questionamentos internos, se recompondo.
Lizzie nunca vira um garoto chorar de forma tão amargurada como aquela. Era penoso de presenciar. No entanto, parte de si sentiu-se estranhamente confortável, pois via que ela não era a única com motivos pessoais e irreversíveis para sofrer. E isso a fez xingar-se mentalmente, não entendendo como podia sentir algo tão egoísta e perverso.
- Quando meu pai morreu, eu decidi que se eu não estava lhe dando orgulho em vida, faria isso agora. É o mínimo que eu posso fazer. É meu dever – disse com seriedade depois de uns minutos. Seu rosto começava a voltar ao normal, e seus olhos paravam de lacrimejar.
- E como ficou a Summer nisso? Se você estava decidido a mudar, porque continuou se envolvendo com ela? – Lizzie perguntou sem jeito. Temia parecer insensível ao recente momento de dor do rapaz.
- Fiquei um bom tempo sem vê-la. Até que minha mãe, umas duas semanas depois do velório do meu pai, foi morar com o pai dela – Zack riu com ares de desaprovação – Aí Summer me procurou, pirada. Queria de qualquer jeito que voltássemos a arquitetar uma forma de separá-los. A principio eu não queria me envolver; Primeiro porque eu já não me importava mais com a minha mãe, e depois porque com a morte do meu pai, minha condição ficou precária. Antes vivíamos numa casa boa, mas de aluguel. Apenas o pub era realmente do meu pai, mas precisa de dinheiro pra manter produtos e pagar funcionários.
- Então você deixou a outra casa e veio pra cá? – tentou adivinhar.
- É. Arrumei aquele emprego com o Martin, que era um amigo do meu pai. Com o emprego eu conseguia pagar o aluguel dessa ruína. O pub dá pra se sustentar com o que se recebe lá, mas não tenho muito lucro. É um estabelecimento caro pra se manter... Mas eu tenho que fazer isso.
Pausou com um olhar vago. Zack de repente se levantou, aproximou-se da televisão e pegou o pires com a vela que já estava quase acabando. Sem falar nada, se retirou da sala em busca de outra vela pra acender no lugar, deixando Lizzie sozinha na sala, pensativa, ainda ingerindo toda aquela historia que Zack lhe contara. Quando ele retornou, pousou a nova vela sobre a TV e sentou-se novamente ao lado de Lizzie.
- Mas se você não queria se fazer parte do plano.... – preparou-se pra questionar, mas Zack rapidamente a interrompeu.
- Olha Lizzie, eu estava sem encontrar a Summer desde aquele dia que você a viu pela primeira vez. Acho que ver você comigo a fez querer me importunar, mas ela também não tinha desistido da ideia de separar o pai dela da minha mãe. Summer não tem capacidade de pensar numa boa ideia sozinha, e eu comecei a me sentir, não sei, injusto com ela. Foi aí que eu finalmente topei ajuda-la. Naquele dia que eu marquei de te levar pra um passeio, lembra? Então, ela queria colocar o plano em ação naquela noite, e quando eu falei que já tinha um programa, ela bateu o pé, começou a discutir e blábláblá. Fiquei meio que sem reação, sabe? Eu não queria te dar um bolo, mas também queria acabar logo com aquela história da Summer...
Lizzie consentiu. Envergonhou-se pelas coisas que tinha pensado e sentido naquela noite quando achou que Zack a trocara por Summer.
- E qual era o plano de vocês? – perguntou curiosa.
- Tentamos armar um jeito de forjar uma traição da minha mãe. Ela quase toda noite vai ao pub beber de graça. E como ela é naturalmente safada, só precisávamos pedir a um amigo que se aproximasse dela, conversasse, trocasse carícias e coisas do tipo que a gente pudesse fotografar...
- Entendi. E depois?
- O pai de Summer estava viajando naquela semana. Quando ele voltou, ela mostrou as fotos e acabou dando uma grande confusão! O pai dela ficou enfurecido! O que eu acho até meio sem sentido, porque bem... Ela tinha traído meu pai, então o que fazia pensar que com ele seria diferente? – riu sarcástico.
- E o que aconteceu? Se ela agora tá morando com você, significa que ele mandou-a embora, né? – perguntou ao se lembrar do primeiro dia que estivera na casa de Zack e ele falara sobre o quarto da mãe.
- Bom... Naquele dia quando voltamos do WaterFront Park e encontramos Summer, lembra? Então, ela foi lá correndo me contar que o pai dela não só tinha escorraçado minha mãe de sua casa, como também tinha a agredido. Não sei exatamente o que houve, mas quando fui buscá-la no hotel que ela havia passado a noite, um lado do rosto dela estava muito avermelhado!
Breve silêncio. Zack relembrava a cena e Lizzie novamente sentia-se mal por ter se irritado naquele dia quando voltavam do passeio e encontraram Summer os esperando na frente da casa de Martin. Mas também não podia se culpar tanto, pois jamais imaginaria aquele motivo.
Lembrar aquele dia acabou fazendo-a a se recordar de outro assunto. Parte de si não queria se preocupar e falar daquilo, mas a pergunta saiu quase que involuntariamente:
- Você soube o que houve com Martin e Lucy? – quando percebeu que já tinha perguntado, arrependeu-se e contraiu os lábios.
- Eu não fui ao velório de Lucy. Não gosto de velórios. Mas visitei o túmulo dela um dia depois. E voltei na delegacia, mas não me deixaram falar com o Martin. Disseram que ele só poderá receber visitas abertas na semana que vem! Pretendo ir lá, se quiser também....
 Lizzie assentiu, mas no fundo rejeitava o convite. A verdade é que tinha receio de saber o que acontecera naquele dia que Lucy morrera e Martin fora preso. Alguma coisa muito horrível deveria ter acontecido, e seu medo era de que no meio disso tudo, seu nome aparecesse como culpado.
- Mas então, tem mais alguma pergunta?
- Acho que não... – respondeu já temendo o que vinha a seguir.
- Acho que é a sua vez de falar agora – indagou Zack arqueando a sobrancelha. Lizzie engoliu em seco.
Não havia nenhum jeito menos complicado ou esquisito de contar a verdade, e Lizzie estava, de fato, disposta a contar toda a verdadeira versão de sua vida, mesmo que a ideia lhe fosse assustadora. Já conseguia imaginar os olhos de Zack, sua expressão de pavor e suas ordens pra que ela fosse embora. Haveria a possibilidade de ele compreender e sentir-se tranquilo com a verdade sobre Lizzie? Ela tinha certeza que não.
Umedeceu os lábios, respirou fundo e fechou os olhos.
- Metade de mim é um demônio! – confesso em voz alta, quase gritando. A frase simplesmente foi cuspida de sua boca, sem pensar. Lizzie apenas falou, e falou em bom tom. Forma mais direta e objetiva impossível.
Abriu os olhos e viu Zack a olhando pronto pra gargalhar.
- Eu sei que você tem sido meio escrota ultimamente, mas isso não te faz um demônio Lizzie – brincou, rindo.
- Não Zack, eu estou falando sério. Literalmente! Parte da minha alma vem de um demônio – repetiu encarando-o com seriedade.
Zack soltou mais uma risada e vendo que Lizzie permanecia séria, fechou a cara.
- Não acredito que você está de sacanagem com a minha cara.
- Mas eu estou falando a verdade! – seus olhos suplicavam pela confiança dele. Zack a olhava com reprovação, realmente crente de que Lizzie estava brincando ou mentindo.
- Eu sei que é difícil de acreditar, mas é ser...
- É impossível Lizzie! Isso não existe! – exclamou impaciente. Lizzie não sabia como reagir à negação de Zack. Sabia perfeitamente que isso era o que iria acontecer, mas agora que estava acontecendo, não tinha ideia de como poderia contornar a situação. E não somente isso, mas Lizzie via que Zack começava a se irritar.
- Por favor, Zack, acredita em mim. Você sabe que essas coisas existem! Você viu aquilo que aconteceu na casa de Martin – Lizzie agarrou o pulso dele, forçando-o a olha-la nos olhos. Ela sabia que sua expressão não era de quem mentia, ele só precisava ver isso pra ceder um pouco.
- Só porque não sabemos explicar o que acontece de estranho no mundo, não temos que justificar com histórias supersticiosas e religiosas, Lizzie.
- Então você não acredita em nada? Não acha que existe demônios, anjos, Deus?
- Acredito, mas não que humanos agora possam ser filhos de uma criatura sobrenatural como você está insinuando – franziu o cenho e puxou o pulso. Os olhos de Lizzie marejavam com suas tentativas inúteis de persuadi-lo.
- Porque você acha que eu iria falar isso se não fosse a verdade, Zack? Você acha que eu sou maluca?
- Não sei... Talvez esteja apenas mentindo... Talvez tenha algum trauma de infância que a fez criar essas convicções... Não sei Lizzie – Zack balançava a cabeça negativamente, evitando olhar Lizzie. Passou a mão pela cabeça e bufou.
- Por favor, Zack, olhe pra mim! Olhe nos meus olhos. Eu estou falando a verdade – sua voz tremulava. Sentia vontade de chorar.
- Eu não acredito que eu te contei as histórias mais tristes da minha vida... E agora você vem com esse papo – sussurrava com os olhos caídos, decepcionado.
- Zack! Aceite a minha história! Meu pai foi possuído por um demônio! Esse demônio me persegue até hoje! Minha mãe se matou pra me proteger dele e eu acho que o ele foi o culpado pela morte da Lucy...
- Meu Deus Lizzie! Ouça o que você está falando – interrompeu com um berro, fitando-a com exclamação. Lizzie abriu os olhos assustada, com lágrimas já escorrendo pela sua bochecha.
- Mas é a verdade... Acredite em mim, por favor – suplicou. Zack se levantou, andou até a porta e abriu-a.
- Vai embora – ordenou com a voz um pouco mais calma, evitando olha-la.
- Não Zack, não faz isso. Eu não estou mentindo – choramingou.
- Por favor, saia – repetiu, agora a fitando sério. Lizzie abaixou a cabeça e apertou os olhos fazendo mais lágrimas caírem. Fungou e passou a mão pelo rosto.
Contra sua vontade, se levantou e andou em direção à porta. Antes de sair, parou de frente pra Zack, que novamente desviou o olhar.
- Cedo ou tarde você vai ver que estou falando a verdade e vai se arrepender de não ter acreditado em mim – murmurou antes de sair e Zack fechar a porta, pensando atordoado sobre tudo o que ela dissera.